Jun 30, 2007

Shangri-La

Em vez de um horizonte perdido, uma mudança de cenário, ou melhor, várias mudanças de paisagem na linha do horizonte.

Primeiro, a descoberta de uma cidade, Edimburgo, com os seus edifícios cheios de história, preponderantemente em estilo Georgiano, e uma luz que lembra sempre Outono quando o sol se lembra de despontar, pelo dourado da luz reflectida nas paredes de pedra calcária dos prédios. Uma cidade que vive a um ritmo mais sossegado e onde os estabelecimentos encerram cedo. Como dizia um escocês que vive em Edimburgo e que tinha visitado Nova Iorque, "eu nunca conseguiria viver em Nova Iorque, é bom para visitar, mas muito acelerado para viver". No meu caso, o oposto, mas tudo está bem quando se vive na cidade que se elegeu para morada.

Depois, as Highlands, com o Loch Ness incluído. As paisagens são de um verde intenso, devido ao clima geralmente húmido e chuvoso, com um toque de mística pela névoa que rodeia os cumes montanhosos e com água em profusão a correr em cascatas e lagos de perder de vista, como que se os vales, ou glens, na terminologia gaélica, fossem uma manta de retalhos verdes, azuis e cinzentos de gradações várias. A beleza natural da Escócia convida a largas caminhadas, num acto de comunhão total com a natureza. Não o fiz, mas assim que se vislumbra da estrada a West Highland Way, o percurso mais famoso da Escócia, que vai desde Glasgow até Fort William, é fácil imaginar as motivações por trás dos inúmeros caminhantes.

No fundo, a grande questão é, o que buscamos (se buscamos algo) quando viajamos por terra, água ou ar. Qual é o dínamo de cada jornada. Uma sede de desconhecido? Uma curiosidade inata que nos leva a desafiar as nossas próprias fronteiras através do cruzar de fronteiras políticas? Acima de tudo, existe a vontade de ir, as razões percebem-se melhor depois, quando já se foi, viu e voltou.

Mas, por vezes, fica-se. Por vezes, as viagens transformam-se em meses e anos. Passamos de meros espias de uma casa alheia a moradores. Revisitei Londres, onde um dia fui e decidi morar. Na bagagem, as saudades dos amigos para matar. A latere, visitar os bairros onde vivi, Notting Hill, Bloomsbury e Chelsea, por esta ordem; passear nas ruas, sentir novamente aquela atmosfera tão própria desta cidade; os mercados de fim de semana; descobrir novas lojas e restaurantes; também os locais familiares, na expectativa de ver se ainda existem; e obter os produtos de sempre, os poucos que não se conseguem também encontrar em Nova Iorque. É como voltar a vestir uma peça de roupa que já não se usava há muito tempo, já não nos lembramos com o que é que a costumávamos usar e até, talvez, nos apeteça usar de outra forma. Aliás, a experiência é muito diferente, porque já não tem a etiqueta com o nome casa. Home is New York now.

[Publicado no Semanário Económico - 29 de Junho, 2007]

Jun 23, 2007

Alba*

Finalmente o mar. Todas aquelas semanas de trabalho intenso tinham por fim permitido desligar o computador sem aparecer de imediato um aviso prévio de calamidade próxima pelo break e todas aquelas horas de avião que tinham antecedido aquela viagem de comboio, tinham-na finalmente levado até à beira mar. Era um mar das dez da noite, a refolgar cinzento como que a gozar o último momento antes de se tornar uma massa indistinta borbulhante de som em vez de cor também. Como que a afirmar a sua presença e a chamar por atenção, porque, sim, àquela hora, noutro país qualquer, seria hora de passar a viagem a repousar os olhos na leitura ou a saborear uma conversa. No entanto, em vez de ver a sua imagem reflectida no vidro quando olhou pela janela, viu uma última réstia de luz do dia reflectida sobre as ondas e nas gotas da chuva que fustigavam aquele comboio com um destino que não era o seu, porque o seu destino ficava pelo caminho.

Esta é a costa da Escócia, mais um país, embora não mais um Estado soberano. Este é um povo de lutadores que viu a fortuna e o azar interlaçarem-se e intercalarem-se numa renda que não se pode desmanchar, apenas ver o resultado em cada momento da história. Terra cujo um dos primeiros povos a se estabelecer foram os Celtiberos, seguidos pelos Romanos e, assim, uma nação que parece remota e tão diferente da nossa península partilha connosco parte do código genético. Terra ainda de Adam Smith, David Hume, Sir Walter Scott, Arthur Conan Doyle e de Irvine Welsh.

O destino nesse dia era St. Andrews, berço do jogo onde o número 18 é o objectivo supremo, ou seja, onde ainda se pode vislumbrar, hoje, o campo de golfe mais antigo do mundo. O motivo, segundo as palavras do pai da noiva, uma fusão, donde se esperam multiplicações e nenhumas divisões. Ou nas palavras do noivo, um evento que celebrou não só uma união, mas também integração. Ou não estivessem naquele casamento na Escócia representantes de vários continentes, incluindo uma mulher portuguesa, que vive em Nova Iorque, a usar um turbante feito durante a festa por uma nigeriana com um tecido das cores do seu clã que fazia parte do seu traje para aquele evento. Para colmatar, dançaram-se danças escocesas e nigerianas com o Mar do Norte como pano de fundo.

Num mundo cada vez mais globalizado, é bom ver que tal não significa também uniformizado, mas antes oferecer novos mundos ao mundo e celebrar o presente que contém um futuro que não esquece o passado.

Num casamento que representou um hino à multiculturização e que foi abençoado de muitas formas, incluindo uma benção Celta:

May the road rise up
To meet you.

May the wind be always

At your back.

May the sun shine warm
upon your face.

May the rain fall soft
upon your field,

And until we meet again.

May God hold you in the palm of his hand.


*Termo em gaélico para Escócia.



[Publicado no Semanário Económico - 22 de Junho, 2007]

Jun 17, 2007

Manhattan ou não Manhattan, eis a questão


"Maybe we become New Yorkers the day we realize that New York will go on without us."


Colson Whitehead

Mas nós não queremos continuar sem a cidade, e esse é o eterno dilema de quem vive em Manhattan. Existem tantos Nova Iorques como os seus habitantes, e para cada um destes, uma cidade diferente para cada etapa das suas vidas. No entanto, há um ponto em comum a todos os que partilham as ruas, os prédios, os restaurantes ou os cafés, para os New Yorkers a diferença entre o estar na ilha e o estar fora da ilha representa o mundo. É a diferença entre o fazer parte e o estar excluído do vibrar, dos acontecimentos, da exposição ao virar da esquina, daquela loja, daquele concerto tão fácil de se chegar.

É por causa desta simples constatação, de que quem não está dentro (da ilha), está fora, que decisões que normalmente tomam em consideração factores de outra ordem, aqui, adquirem uma dimensão diferente. Uma dessas decisões é a de ter filhos. Foi só depois de viver em Manhattan que percebi a subtileza de comentários como o de Yale, um dos personagens de Woody Allen no filme Manhattan, quando, ao desejo manifestado pela sua mulher de ter filhos, responde, "ainda não, não estou preparado para me mudar para Connecticut". Connecticut ou New Jersey, não são, de facto, Nova Iorque, não apenas porque são já Estados diferentes, mas porque representam estilos de vida completamente diversos.

Na ilha está a selva urbana, a vida ao ritmo de mil à hora, os prédios que só podem crescer na vertical e ainda assim, onde o solo o permite, os apartamentos de divisões geralmente pequenas e a falta de espaço, a pressão imobiliária e os preços estratosféricos por um imóvel de dimensões meramente razoáveis para os standards americanos. Do outro lado, estão as casas de inúmeras divisões com jardim, os bairros familiares, as escolas mais acessíveis e uma viagem mais longa para chegar ao emprego. Mas a decisão de atravessar a ponte ou um dos túneis por baixo do rio não é tomada de ânimo leve. Um colega meu deixou recentemente esse estado de negação que duram os primeiros meses do segundo filho e passou para a realização, embora ainda totalmente convicta, de que vai ter que deixar de ser um nova iorquino. O choque, esse, não é apenas de quem muda, é também de quem vê partir, porque sabemos, precisamente, o que está a ser renunciado.

Mas nesta cidade nem tudo são dilemas existenciais, aqui também se dança Bach nas coreografias de monstros de talento do mundo da dança, como George Balanchine ou Jerome Robbins. Three by Bach: Concerto Barocco, Tribute e Brandenbburg, Sábado passado, pelo New York City Ballet, quem mais.

[Publicado no Semanário Económico - 15 de Junho, 2007]

Jun 9, 2007

Luminato

Assim que o homem decidiu desafiar os elementos foi criada a arquitectura. Assim que o homem decidiu aplicar os princípios das economias de escala e da especialização, foram criados os primeiros aglomerados. Assim que o homem decidiu que não existem limites à criatividade, foi criado o Luminato.

Uma viagem de negócios a Toronto coincidiu com o lançamento do Luminato, um festival que celebra as artes e a criatividade e que visa rivalizar outros festivais já estabelecidos no circuito das artes internacional, como os festivais de Edimburgo e de Sydney. Acima de tudo, o festival procura enfatizar a presença de Toronto no mapa, nesta feira das vaidades em que todas as cidades procuram o primeiro prémio. Uma busca que não é tanto uma forma de puro exibicionismo, mas antes um acto simbiótico de sobrevivência, pois, enquanto dão ao mundo as vivências que proporcionam, continuam a atrair os artistas e patronos que perpetuam o tecido multicultural que as enriquece.

Um fim de semana perfeito, pode, pois, ser numa cidade que se celebra a si própria com tons de mundo. As raízes estão lá, as folhas em qualquer parte. A inovação arquitectónica que pautua Toronto foi recentemente enriquecida pelo cristal, desenhado por Daniel Libeskind, que acrescenta ao edifício do Royal Ontario Museum cinco prismas que se intersectam, tal como se o passado se encontrasse com o presente. Enquanto deambulava pelo interior do cristal, no primeiro dia em que este abriu ao público e ainda com a maioria das galerias sem exposições, as primeiras palavras da música de David Byrne, The Heart's a Lonely Hunter, "Welcome to my spaceship", reverberavam na jukebox mental.

Depois, não basta a arquitectura, faltavam as imagens. Em particular, as fotografias de paisagens marinhas de Hiroshi Sugimoto como parte da exposição History of History, curada pelo artista, onde também se incluem antigos artefactos asiáticos e fósseis, ou a fotografia não fosse, segundo Sugimoto, o processo de transformar o presente em fósseis.

Ainda assim faltavam os sons, do saxofone, da percussão e do baixo, no morno do sol no distrito histórico da destilaria. Mas nada seria perfeito sem Omara Portuondo, ou a poesia feita música numa colaboração única de Philip Glass e Leonard Cohen. A poesia de Leonard Cohen também tem forma e um passeio pelo bairro de Yorkville a caminho do hotel, horas antes do regresso a Nova Iorque, levou-me à galeria Drabinsky, onde estão em exposição pela primeira vez os desenhos de Cohen feitos ao longo de mais de quarenta anos. Eu tinha visto a exposição anunciada no programa do festival para a segunda-feira seguinte à minha partida, por isso não tinha prestado mais atenção, até que o virar de uma esquina me levou à galeria com as portas já abertas. Depois, ficou um catálogo assinado por Cohen, afinal todas as cidades têm os seus tesouros...


Interior do Michael Lee-Chin Crystal:


Photos by RT

[Publicado no Semanário Económico - 8 de Junho, 2007]

Jun 2, 2007

Descodificar a Cidade

Cada cidade tem o seu código não escrito de regras e hábitos, o que em Nova Iorque é quase uma antítese, porque o que faz parte do código genético da Gotham (o outro nome para Nova Iorque) e de quem nela vive é o querer ser diferente. Cada cidade tem, também, a sua forma muito peculiar de viver cada estação do ano. Esta Segunda-feira foi Memorial Day, em homenagem aos soldados tombados em combate, o que significa o começo "não oficial" do Verão. Para os New Yorkers significa igualmente o início da época dos Hamptons. Os convites para as festas já não dizem respeito apenas a moradas de Manhattan, agora designam os locais do momento à beira mar, e até o meu supermercado on-line já me notificou que durante os próximos meses também faz entregas nesse destino.

A própria cidade veste-se para a ocasião, num misto de pequenos prazeres e de grandes eventos. Assim que o sol quente desponta, Bryant Park, na 42 com a 5.ª Avenida, fica lotado, à hora de almoço, com as multidões à procura de um pouco de sol para acompanhar a sua sandwich ou salada e para os que não conseguem deixar o computador portátil no escritório, o parque proporciona acesso wireless à Internet. Para as noites mornas, o bar ao ar livre abre os seus domínios.

A própria arte sai à rua. Este ano o bar terraço do MET para além de proporcionar umas vistas deslumbrantes de Central Parque e prédios circundantes, oferece uma mostra dos trabalhos mais recentes de Frank Stella. Por sua vez, o parque das esculturas do MoMA está neste momento a ser convertido no palco para uma exposição de outro escultor, desta feita, para assinalar os quarenta anos da carreira de Richard Serra.

Com o Verão vêm também os festivais e os concertos no parque. Nas palavras de Kahlil Gibran, "Art began when man glorified the sun with a hymn of gratitude", e Nova Iorque nunca esquece essa inspiração.

Outro hábito nova iorquino, que se torna num maior prazer quando as temperaturas se tornam amenas, é correr quer em Central Park, ou, como no meu caso, à beira do Hudson. Talvez porque os New Yorkers gostam de desafios ou talvez porque quando se quer fazer tudo, mas o tempo é escasso, correr proporciona uma maior flexibilidade para fazer exercício, a verdade é que é contagiante e com um menor ou maior "profissionalismo" praticamente todos o fazem. Mas aqui o correr só por correr também não servia, se em Londres as corridas para caridade ocorriam de tempos a tempos, aqui este tipo de eventos acontece quase semanalmente. Na semana passada, corri a Wall Street Run a favor da American Heart Association como parte da equipa da minha empresa, depois da missão cumprida, por volta das sete e meia da noite, se se perguntasse à maioria dos participantes para onde iam a seguir, um resposta não infrequente era, de volta ao escritório.

[Publicado no Semanário Económico - 1 de Junho, 2007]