Dec 23, 2007

NY Diaries 22: A Cidade Onde Acontece

Nova Iorque não é apenas uma cidade onde as coisas acontecem, é, também, uma cidade onde se faz acontecer. Nesta época de balanço e de celebração, pagam-se os bónus à banca, festeja-se o alcançar de objectivos, estabelecem-se novas metas e volta-se a começar do zero. A juntar aos inúmeros eventos típicos desta altura do ano, sentimo-nos todos um pouco numa maratona a terminar os pendentes antes de irmos de festas.

Que os Nova Iorquinos são impacientes, é uma asserção feita por Americanos e pelo mundo. Nós, por seu turno, nem reparamos, não fossem os amigos doutras paragens comentarem o facto. Um exemplo último da falta de tempo e, sem dúvida, da falta de espaço, é a casa automática, ou Push Button House, pelo arquitecto Adam Kalkin, que está até ao dia 29 de Dezembro no Centro Time Warner. Tinha posto na minha agenda uma visita obrigatória, mas como em dias de contagem decrescente para a partida a necessidade fala mais alto, foi preciso um livro difícil de encontrar levar-me a uma livraria de Columbus Circle para a ver ao vivo. O Illy Café serve espressos num espaço que em noventa segundos se converte de um contentor numa casa, com cama, balcão, sala com estantes e mesas.

Estou prestes a fazer a travessia do Oceano para a visita Natalícia às origens e nesta altura reflicto sobre as diferenças entre os Estados Unidos e a Europa. Aqui é um lugar-comum designar a Europa no colectivo, em vez de identificar um país em particular, e até nós, europeus acabamos por o fazer também. Se por um lado, a Europa está realmente próxima dos Estados Unidos por razões históricas, há também muitas diferenças, mesmo entre cidades irmãs como Londres e Nova Iorque. Por exemplo, na América o mecenato assume uma dimensão fulcral na dinamização das artes e da sociedade em geral. O facto de Nova Iorque ser actualmente o centro artístico por excelência, deve-se sobremaneira a uma tradição de patronato que remonta ao final do século XIX. Em conversa com uma das pessoas que curou a exposição do Richard Prince patente no Guggenheim, Inglesa e que conhece os meios artísticos em ambos os lados do Atlântico, verificámos que na Europa há um sentimento que o Estado deve ser o mecenas último dos museus e incentivador das artes. O indivíduo, em geral, inibe-se de efectuar contribuições avultadas, salvo raras excepções. Aqui, essas excepções são a regra. A grande parte do espólio dos museus de Nova Iorque constituiu-se à base de doações. Por exemplo, a exposição Age of Rembrandt: Dutch Paintings in the Metropolitan Museum of Art apresenta uma das maiores colecções de pintura flamenga fora da Holanda, com 228 quadros exclusivamente provenientes de dádivas ao MET. Há uma noção de responsabilidade pelo bem colectivo que é intrínseca ao indivíduo e que se denota em todos os campos. São exemplos disso a Fundação Gates, no campo da medicina, ou a Baryshnikov Dance Foundation, no campo da dança e das artes, para nomear apenas alguns casos.


[Publicado no Semanário Económico - 21 de Dezembro, 2007]

Dec 15, 2007

NY Diaries 21: O Natal em Nova Iorque

O Natal em Nova Iorque é magia, é o verdadeiro "White Christmas" que desperta inúmeras memórias de criança, quando, para vislumbrar o verdadeiro natal branco dos livros de histórias, era preciso viajar para outras paragens fora da Lisboa habitual. Aqui faz frio, a cidade cobre-se de branco quase todos os anos por esta altura e combinam-se visitas aos ringues de patinagem no gelo em Centra Park, Bryant Park e Rockefeller Center.

O Natal começa oficialmente com a cerimónia da iluminação das árvores no final de Novembro. Há várias espalhadas pela cidade, no Lincoln Center, no Madison Square Park, onde decorreu a primeira cerimónias de iluminação da árvore de Natal da América e, claro, a universalmente conhecida árvore no Rockefeller Center. Os próprios prédios são árvores de Natal gigantes, transformando Nova Iorque num enorme bosque enfeitado.

Mas Nova Iorque também é diversidade. Aqui desejam-se boas festas e não feliz Natal, a árvore de Natal é muitas vezes chamada de árvore das festas ou Holiday Tree, para que todos se sintam representados e para que as decorações festivas sejam realmente para todos. Nesta altura do ano, os símbolos cristãos e pagãos convivem com outras tradições que, aqui, adquirem especial importância devido ao tecido cultural da cidade. Nesta época a religião judaica celebra o Hanucá, ou Festival das Luzes, instituído por Judas Macabeu e seus irmãos para comemorar a libertação de Jerusalém do domínio selêucida e a purificação do templo sagrado. Nas montras e entradas dos prédios de Nova Iorque as árvores de Natal e as renas coabitam com o Chanukia ou Menorá, um candelabro para nove velas. Este ano, o primeiro dia do Festival das luzes calhou a 5 de Dezembro e dura oito dias, durante os quais se acende uma nova vela cada dia para celebrar o milagre original aquando da libertação do templo, em que a Menorá permaneceu acesa por oito dias com o azeite consagrada para um dia apenas. Por seu turno, o presépio mais proeminente na cidade é o presépio barroco do Metropolitan Musem of Art que todos os anos é recreado com as peças do século XVIII provenientes de Nápoles.

Nova Iorque transforma-se ainda na cidade de cristal com a estrela Swarovski no topo da árvore do Rockfeller Center e do enorme floco de neve UNICEF feito de 16.000 prismas de cristal Baccarat no topo do cruzamento da 5.ª Avenida com a Rua 57. As grandes lojas como o Saks ou o Bloomingdales lembram verdadeiros musicais de Hollywood dos tempos de Fred Astaire e Ginger Rogers, cobertas numa profusão de luzes e com montras decoradas como palcos de teatro ou encenações de bailes de máscaras.

Outra tradição bem Nova Iorquina, são as gorjetas dadas por esta altura com as boas festas aos porteiros e pessoal dos prédios residenciais. Também se recebem cartões de Natal, por vezes inesperados, como o que recebi esta semana do "Pai Natal" que me deixa o jornal à porta todas as noites. Além de tudo isto, as festas, por caridade, porque é Natal, enfim, porque aqui nunca são necessárias grandes desculpas para se festejar e estar com o chamado Holiday mood.

[Publicado no Semanário Económico - 14 de Dezembro, 2007]

Nov 17, 2007

NY Diaries 20: O Outro Lado do Espelho


Numa cidade dividida entre Este e Oeste, quase como se fosse uma Big Apple cortada ao meio prestes a ser devorada pelas hostes incansáveis que percorrem as suas ruas, ruas estas também com moradas divididas entre Este e Oeste, com uma West Village e uma East Village, sim, bem diferentes, uma trendy e outra alternativa, até mesmo com um East River e onde transitar de Este para Oeste nem sempre é fácil (note-se a quase ausência de linhas de metro que cruzem a cidade de um sentido ao outro), por vezes o Este e o Oeste também se encontram.

De acordo com Salman Rushdie, a palavra Oriente é derivada de Orientar. Para mim, é derivada de exótico, misticismo, especiarias, sedas e brocados, arabescos e porcelana. O Oriente, no entanto, rodopia e consegue saber onde está o Norte depois de o fazer. No Oriente a espiritualidade assume muitas formas e filosofias. Por vezes, essas formas expressam-se numa cidade, também ela na costa leste de um país. Nova Iorque foi palco de uma celebração que eu, nas minhas viagens anteriores à Turquia, acabei por nunca testemunhar, a cerimónia espiritual do Semâ. No palco de um teatro lindíssimo na rua 43, uma tradição com sete séculos em que a dança, ou acto infinito de rodopiar, transcende quer a terra como o céu, numa comunhão total com a eternidade. Esta cerimónia foi desempenhada pelos Whirling Dervishes da ordem Mevlevi da Turquia, uma ordem muçulmana fundada por inspiração do poeta e filósofo Sufi do século XIII, Mevlana Rumi.

De acordo com a filosofia de Rumi, tudo revolve e o ser humano vive, precisamente, através da revolução das partículas, revolução do sangue no seu corpo e revolução das etapas da sua vida. O Semâ é um ritual que representa a viagem espiritual em busca da verdade e crescimento, o abandono do eu e o regresso novamente a ser humano, mas um ser mais amadurecido, que atingiu uma maior perfeição.

Representa também comunhão de culturas, patente numa frase de Rumi que as gentes da Turquia mantêm bem presente: "vem, sejas tu quem fores, vem". Foi Istambul e Nova Iorque encontrados, outro expresso oriente que ligou cidades com várias culturas, tradições e religiões, uma ponte entre este e o outro lado do Atlântico e ainda mais além, que ligou a América, a Europa e a Ásia.


"You have no idea
how hard I have looked for a gift to bring You.
Nothing seemed right.
What is the point of bringing gold to a gold mine,
or water to the ocean.
Everything I came up with
was like taking spices to the Orient.
It is no good giving my heart and soul,
Because You already have these
So I have brought a mirror.
Look at Yourself and remember me."

Mevlânâ Rûmî

[Publicado no Semanário Económico - 16 de Novembro, 2007]

Nov 10, 2007

NY Diaries 19: Trick or Treat

Há uma noite no ano em que as fronteiras deste mundo e do outro se esvanecem, como as palavras de uma carta escrita a caneta de tinta permanente que cai ao mar. Para os Celtas essa era a noite de 31 de Outubro, quando o Verão e o tempo das colheitas terminavam e começava o longo e frio Inverno. Essa noite, é hoje, a noite de Halloween.

Trick or Treat? Não, não são apenas as crianças que o dizem, quando, mascaradas, tocam às portas das casas em busca de um rebuçado. Nesta noite, miúdos e graúdos têm direito a um querer ser. Talham-se lâmpadas de abóboras, decoram-se as casas e as montras de preto e laranja, fazem-se filas nas lojas de máscaras e deixa-se a imaginação voar. Uns tentam chocar, outros ser criativos e outros ainda, simplesmente, não se esforçam.

Em Nova Iorque o Halloween também se vive de uma forma especial. A noite, supostamente, de pseudo-filme de terror, transforma-se numa feira de personagens que desfilam um pouco por toda a parte na cidade, e, em particular, na West Village Parade. Andar nas ruas, é como imergir no mundo do fantástico, tão depressa nos cruzamos com vampiros ou bruxas, como com homens-aranha, ou Andy Warhols. A multidão é absolutamente incrível e depois de se atravessarem cordões e barreiras policiais para se chegar à tão esperada festa de Halloween, é quase com ironia que se vêm outra vez um sem número de polícias, embora, desta vez, vindos do mundo do faz-de-conta. Aqui, a euforia passou sem barreiras para o interior do Duvet, um clube de Manhattan, onde não faltaram, entre outros, o papa, uma freira, um padre, diabinhos, um faraó e uma dama antiga de minissaia.

Mas a apropriação do imaginário colectivo não acabou aqui. Noutro desafio às fronteiras pré-estabelecidas da originalidade, o Guggenheim tem em mostra uma exposição dedicada a Richard Prince, Spiritual America, que se descreve a ele próprio como um "ladrão" que "pratica sem licença". A grande revolução protagonizada por Richard Prince consistiu em refotografar nos anos 70 os anúncios de mobiliário para casa de uma revista, retirar qualquer referência publicitária das fotografias, emoldurá-las e exibi-las como obras da sua autoria. Daí seguiram-se outras séries, como as fotografias dos anúncios de uma marca de cigarros com outro símbolo americano, o cowboy.

No campo do desafio às fronteiras da identidade, ainda na semana do Halloween, a exposição dedicada a Sol LeWitt, Scribble Wall Drawings, na galeria de arte PaceWildenstein. Este mestre do minimalismo e da arte conceptual deixou este mundo em Abril de 2007, mas todos os enormes desenhos de parede foram executados em Agosto de 2007, segundo instruções detalhadas providenciadas por LeWitt. O comprador da obra adquire o padrão com uma licença para os desenhar, o que pode ser comissionado ao estúdio do artista. As obras são, assim, sempre diferentes, num processo de regeneração perpétua.

[Publicado no Semanário Económico - 9 de Novembro, 2007]

Oct 27, 2007

NY Diaries 18: Convenções

Na boa tradição do viver em sociedade em que se implementam convenções identificáveis pelo maior número possível de pessoas, e em que, de acordo com as mesmas, por exemplo, se divide o ano em estações e os dias em horas, é sempre um prazer ver um rebelde tomar forma, principalmente quando este brilha em tons vibrantes e é morno e saboroso. Esse rebelde é o Verão índio ou o Verão de São Martinho, como se queira chamar, na tradição anglo-saxónica ou ibérica, a verdade é que o Verão já disse vários falsos adeus este ano, mas teima em enganar o ciclo das estações e retorna sempre, semana após semana. Por aqui ainda se faz jogging à beira-rio ou goza-se o sol na relva do parque em trajes mais minimalistas, embora as folhas das árvores em redor estejam já activamente a trabalhar para outro tipo de bronze.

Nas palavras de Kurt Vonnegut, A Man without a Country:

I think that one of the biggest mistakes we're making, second only to being people, has to do with what time really is. We have all these instruments for slicing it up like a salami, clocks and calendars, and we name the slices as though we own them, and they can never change - "11:00 AM, November 11, 1918," for example - when in fact they are as likely to break into pieces or go scampering off as dollops of mercury.

Mas se as estações se rebelam e o tempo é aquilo que dele fazemos, a nossa percepção de uma cidade também vai evoluindo com esse chamado tempo vivido e não apenas contado por relógios ou calendários. Nova Iorque, por exemplo, cada vez me parece mais pequeno. É como que se a besta enorme e quase intimidante da minha primeira visita há muitos anos atrás tivesse sido gradualmente domesticada e se tornado um tigre amansado. É, de facto, uma questão de perspectiva, principalmente quando essa perspectiva inclui vislumbrar Manhattan de Sul a Norte banhada pelo sol através da janela de um avião como tive a sorte de fazer a semana passada ao aterrar de uma viagem de negócios. Dali os picos parecem apenas montes contíguos localizados em pontos estratégicos da cidade.

Esta semana também se atravessaram outras fronteiras. Desta vez, o Next Wave Festival, organizado pela Brooklyn Academy of Music, recebeu a Compañía Nacional de Danza Española, com coreografia por Nacho Duarte. Foram soberbos e terminaram a actuação com uma ovação de pé por um dos públicos mais exigentes. Por vos Muero, ao som de canções da Catalunha dos séculos XV e XVI e da poesia lindíssima de Garcilaso de la Vega; Castrati, ao som de Vivaldi o recrear de uma tradição que desafiou convenções porque outras convenções baniam a mulher da ópera e dos coros; e, por fim, White Darkness, numa reflexão sobre o mundo da droga. Mais uma semana inesquecível a bordo da Big Apple.

[Publicado no Semanário Económico - 26 de Outubro, 2007]

Oct 20, 2007

NY Diaries 17: Desejos do Intelecto Tornados Realidade na Selva de Betão

Os lugares onde vivemos deviam satisfazer quase todas as nossas necessidades, quer as físicas como as da alma. Viver em cidades como Nova Iorque é como abrir uma caixinha de surpresas todos os dias e sentirmo-nos como crianças numa loja de doces, ou como Hansel e Gretel perante a casa de pão de gengibre. Queremos tudo. A oferta de eventos, exposições, inaugurações e espectáculos vai muito além do que seria humanamente possível fazer num espaço de 24 horas. A tarefa mensal ou semanal é seleccionar, prioritizar e depois coordenar agendas. Por vezes, recebemos um bónus, ou vários eventos fabulosos concentrados. O festival da The New Yorker que decorreu no início do mês é precisamente um desses jackpots, ou um fim-de-semana de três dias dedicado às artes, com palestras, música, filmes e sessões de autógrafos.

Se tivesse havido uma vela apagada e um desejo para essa semana, podia bem ter incluído o autógrafo de um monstro do mundo das letras. Tão pouco me ocorreria dois e muito menos na mesma cidade. Mas aconteceu, na mesma tarde e no mesmo local. Numa época de prémios Nobel, Orhan Pamuk, o prémio Nobel da literatura do ano passado, e Salman Rushdie, numa sessão de autógrafos organizada pelo festival da The New Yorker. Por outro lado, numa cidade com uma das mais elevadas concentrações de artistas consagrados por metro quadrado, o Nova Iorquino vai-se tornando gradualmente impassível a estes fenómenos, pelo menos é assim que eu interpreto o facto de não terem estado multidões a aguardar estes autores.

O que é que Pamuk, Rushdie e Nova Iorque têm em comum? Pamuk viveu três anos em Nova Iorque, estas ruas, luz e verticalidade, terão, um dia, despertado nele ondas de criatividade. Ambos, Pamuk e Rushdie, desafiaram convenções e expressaram abertamente as suas opiniões e por isso receberam ameaças de morte. Nova Iorque já albergou muitos perseguidos políticos, ou, simplesmente, aqueles que procuraram pincelar a sua criatividade num ambiente de mais ampla liberdade.

Mas não é só a palavra escrita que desafia convenções, as convenções da frase feita música são regularmente desafiadas pelo Kronos Quartet. Desta vez, em equipa com o acordeão eléctrico de Kimmo Pohjonen e o sampler de Samuli Kosminen, como parte de outro dos jackpots de Outono, o Next Wave Festival, organizado pela Brooklyn Academy of Music. No mesmo dia que a sessão de autógrafos, num dia que só podia acontecer em Nova Iorque.

Five mysteries hold the keys to the unseen: the act of love, and the birth of a baby, and the contemplation of great art, and being in the presence of death or disaster, and hearing the human voice lifted in song. These are the occasions when the bolts of the universe fly open and we are given a glimpse of what is hidden; an eff of the ineffable.

Salman Rushdie, The Ground Beneath Her Feet (agora autografado por Rushdie)


[Publicado no Semanário Económico - 19 de Outubro, 2007]

Oct 6, 2007

NY Diaries 16: Cowboys que nunca ouviram falar de Lucky Luke

Quando embarcamos num avião rumo ao Texas, o que eu fiz a semana que passou pela primeira vez, automaticamente são despertadas memórias de outros tempos e de outras eras. Em Dallas o próprio aeroporto tem o nome de um forte, Fort Worth. Como se ainda hoje os invasores tivessem que ser barrados antes de entrarem o Lone Star. A estrela solitária não é outra que não o único Estado da Federação com direito de secessão. A alma intrépida de um estado de espírito que remota aos tempos em que o território foi desbravado a cavalo, em que o homem e o animal comungavam do mesmo caminho, medos e ambições, de sol a sol em rumo à linha do horizonte.

Depois de uma semana em formação por terras do Texas, se bem que circunscrita à "civilização", não vi cowboys à séria, apenas souvenirs alusivos e restaurantes temáticos com música country a condizer. Aparentemente o culto do cowboy é mais uma obsessão europeia que americana e horror dos horrores, a maioria dos americanos nunca ouviu falar de Lucky Luke! Como é que é possível crescer sem a companhia do único cowboy que dispara mais rápido que a sua sombra, sem Jolly Jumper, Rantanplan ou os irmãos Dalton? A pradaria não pode certamente ser a mesma sem aquela figura solitária criada por Morris num país tão distante do Wild West como a Bélgica...

Mas Dallas só por si também tem a sua estrela no passeio da fama das nossas memórias. Sim, Pam, Bob e J.R. pulularam um dia nos nossos serões e puseram no nosso mapa pessoal a terra dos magnatas do petróleo e dos rodeos. Nem de propósito, como para me relembrar para onde eu ia, o Financial Times do fim-de-semana anterior à minha partida tinha precisamente uma coluna sobre a série de televisão que um dia parou a América e foi notícia quando o J.R. foi assassinado. Para além das planícies, também as montanhas erguidas pelo homem, como não podia faltar no centro financeiro de uma cidade americana. Ali, o animal a domesticar são os mercados que cada vez se parecem menos com um touro e mais com um urso. Mas a caça ao urso é também um clássico americano, por isso ainda há esperança.

Pessoalmente, eu também tinha esperança que o regresso decorresse de acordo com o plano ao minuto previamente delineado. Três horas e trinta e quatro minutos de voo até Nova Iorque no final de Sexta-feira com aterragem mesmo a tempo da festa de inauguração da exposição de Richard Prince, no Guggenheim. Pois não, e a explicação vinha precisamente no Wall Street Journal desse dia que eu levava comigo no avião, parece que os céus por estas bandas andam congestionados e basta uma nuvem mais carregada a obstruir alguma das vias para o trânsito ficar totalmente engarrafado. Assim, cheguei a Manhattan às onze e meia da noite, precisamente à hora em que a festa terminava. Felizmente esta é a cidade que nunca dorme...

Foto: www.sesseler.de


[Publicado no Semanário Económico - 5 de Outubro, 2007]

Sep 22, 2007

NY Diaries 15: NY Fashion Week


Falar de moda é, por vezes, falar de clichés. Todos nós acabamos por ter uma opinião sobre a indústria, sobre os modelos, enfim, sobre o que está em voga. Em Nova Iorque o mundo da moda manifesta-se de diversas formas, no entanto, na altura da New York Fashion Week, a cidade é tomada de assalto e passa a girar em torno deste eixo, em particular. Mesmo quem não segue de perto o que se passa nesta esfera, sabe que algo está a acontecer na cidade. De 5 a 12 de Setembro, Nova Iorque reverberou de actividade, o show saiu às ruas, as celebridades confluíram à ilha chamada Manhattan, viram-se mais limusinas e os hotéis e restaurantes in encheram e foram o cenário de diversas festas.

Maquilhagem, cabelo, unhas, acção. O local para estar e ser visto nesta semana é, precisamente, os desfiles de moda que constituem o prato principal da Fashion Week. Isto, quando o trabalho o permite. Se para os profissionais do mundo da moda, literalmente, dos quatro cantos do mundo, a atenção está, naturalmente, focada no que se passa na passerelle, para os restantes de nós, com profissões a tempo inteiro noutros sectores de actividade, há que coordenar agendas. No entanto, tudo é possível.

Dos desfiles a que assisti, destaco dois. Um, o desfile da linha Z Zegna, a versão mais urbana e descontraída de Ermenegildo Zegna, porque só podia ter acontecido no contexto do cenário Nova Iorquino. No coração de TriBeCa, a passerelle podia bem ter tido acesso directo à rua, porque o desfile reflectiu, precisamente, o estilo eclético e ousado de Nova Iorque. Depois, o desfile de Carolina Herrera que representou o glamour que ainda está associado a Nova Iorque. Estilo e sofisticação q.b., mas não só, o desfile decorreu no cenário tradicional da New York Fashion Week - a tenda em Bryant Park. Do branco, vislumbrado por entre as árvores do parque, entra-se para um mundo forrado a preto, iluminado por flashes e focos de televisão.

Mas afinal o que se procura na moda? Uns buscam inovação, originalidade, novos materiais, novas cores, novas formas e tendências. A colecção Primavera/Verão 2008 trouxe cores vibrantes, em notas cítricas, estampados étnicos, silhuetas alongadas e cinturas subidas. Mas, o que realmente importa, o que faz a diferença, resume-se a uma palavra, atitude. Se o que é preciso para que essa mesma atitude se manifeste é uma peça de roupa ou um acessório, so be it. Na era da massificação dos itens de luxo e em que o próprio conceito de luxo está a ser reinterpretado, o que conta é a experiência em si, algo que nos faz sentir especiais e prontos para enfrentar o mundo com confiança.

Fotografia: Carolina Herrera, colecção Primavera/
Verão 2008

[Publicado no Semanário Económico - 21 de Setembro, 2007]

Sep 15, 2007

NY Diaries 14: Washington, D.C.

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.

Declaration of Independence, July 4, 1776

Washington, District of Columbia, uma área que não pertence a nenhum Estado da Federação, a capital dos Estados Unidos da América em toda a sua solenidade. Há cerca de duas semanas estive em Washington, D.C. em trabalho. D.C. é, fundamentalmente, uma cidade institucional, onde muitos dos que nela trabalham ali não residem e que fica vazia quando o Congresso está de férias, tal como acontece em Agosto. Aliás, basta ir jantar a um desses restaurantes preferidos pelos políticos que normalmente estão à cunha, mas que estão quase vazios nesta altura do ano, para se ter essa confirmação. Há algumas cidades assim, por exemplo, Brasília ou Ancara, capitais de um Estado soberano, mas não capitais financeiras, traçadas e criadas para serem a capital, mas que, por vezes, parece que carecem de ser vividas, sacudidas pela realidade que existe para além de legislar e governar.

Para uma cidade que vive maioritariamente de pessoas de outras paragens, uma das premissas fundamentais é ter ligações práticas e desburocratizadas. Sim, não totalmente, uma vez que quem viaja de avião ainda tem que enfiar todos os recipientes com líquidos no ínfimo saquinho para congelar para passar a segurança. Mas pelo menos temos o Delta Shuttle, que é, basicamente, como apanhar uma camioneta, sem lugares marcados, embarque quase em cima da hora da partida e em que se pode alterar qualquer bilhete na própria porta de embarque.

E que mais faz de D.C. uma cidade sui generis? A ausência de arranha-céus, pois há uma lei que não permite que nenhum prédio seja mais alto do que o Capitólio; os edifícios de traça neoclássica desenhados por um francês, Pierre L'Enfant; as avenidas designadas por letras, em vez de números; os memorials ao redor da Tidal Basin, que nos recordam o incrível grupo de visionários que foram os fundadores deste país, bem como alguns dos Presidentes que lhes seguiram, o memorial dedicado a Thomas Jefferson, seguido pelo memorial a Franklin D. Roosevelt, e o enorme monumento a Abraham Lincoln com vista para o obelisco gigante que constitui o Washington Monument e para o Mall, a Avenida nobre da cidade com o Capitólio no extremo oposto a Lincoln.

Mas quando se fala de coragem, também se tem que notar o papel de Portugal em dar novos mundos ao mundo. Como diz um artigo sobre a exposição, Encompassing the Globe - Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries, que não tive oportunidade de ver e que está patente até 16 de Setembro na Smithsonian's Sackler Gallery, em D.C., os Portugueses foram, na verdade, os precursores da globalização.


[Publicado no Semanário Económico - 14 de Setembro, 2007]

Sep 1, 2007

NY Diaries 13: Chinatown

Há um ponto no mapa de Nova Iorque, com fronteiras, tal como se de um país se tratasse. Fronteiras traçadas nos mapas da cidade e que para além de identificarem um bairro, identificam uma amalgama cultural, um mundo dentro de outro mundo, como as pregas de uma saia, que têm uma cor ou padrão por fora, mas uma alma diferente por dentro que se manifesta de quando a quando para o exterior.

Essa cidade dentro da cidade tem duas faces, uma cinzelada em forma de máscara de tragédia grega, pseudo-ocidentalizada, a Chinatown dos turistas e das ruas a rebentar pelas costuras, sempre tão cheias de gentes e de tudo. Das lojas, bancas e quiosques, com jóias, brinquedos, artigos electrónicos e malas de senhora de imitação, dos pregões em forma de néon e das marcas bem conhecidas que desfilam nas passerelles de Paris, Milão, Londres ou Nova Iorque. Um mundo do faz de conta, mas em que a imaginação não vale nada, o que soma cifrões são as réplicas o mais fiel possível de uma realidade que está a uns quantos quarteirões mais acima, nas boutiques da 5.ª Avenida, Madison Avenue ou SoHo.

Por trás da máscara está o verdadeiro rosto de Chinatown, a cidade que vive de uma economia paralela, de imigrantes recentes que mal falam inglês e que recebem salários pouco elevados. A Chinatown dos supermercados de produtos com rótulos exclusivamente em caracteres chineses e dos bancos asiáticos em cada esquina. Neste passado Sábado estive, precisamente, nesta outra Chinatown, num casamento que tinha sido celebrado nessa manhã, de acordo com o rito chinês, durante uma cerimónia do chá só para a família em casa dos pais do noivo noutro bairro de Manhattan, Chelsea. Uma família que emigrou da China há mais de quarenta anos, mas cujos pais ainda hoje não falam uma única palavra de Inglês. Trabalhavam, fazem compras e vivem realmente neste outro bairro, objecto dos NY Diaries desta semana, Chinatown. É quase difícil acreditar, não tivesse eu sido apresentada aos mesmos para ser cumprimentada numa língua que para mim precisou de intérprete.

O casamento foi um verdadeiro banquete à moda chinesa, com dez pratos e vestidos de festa chineses. Também havia trajes Indianos e pessoas de muitas outras nacionalidades ou descendências, ou não estivéssemos em Nova Iorque. Noutro hino à diversidade, Nova Iorque celebrou esta semana o início do U.S. Open, com a voz de Aretha Franklin a invocar R.E.S.P.E.C.T. e as irmãs Williams a ganhar aos pontos. Foi muito diferente da minha experiência em Wimbledon em Junho passado. Afinal, foi um Grand Slam à Americana, muita diversidade sim, mas sempre há algumas coisas que only in America...

[Publicado no Semanário Económico - 31 de Agosto, 2007]

Aug 27, 2007

NY Diaries 12: Ainda Há Estrelas no Céu

Numa cidade onde cada minuto tem o valor de um nanossegundo. A hora de ponta em Nova Iorque é uma epopeia em prol da eficiência que narra o feito de chegar de A a B no menor espaço de tempo possível. As mulheres desfazem-se dos saltos e os homens dos blazers para se poderem movimentar mais rapidamente. Põem-se os "fones" nos ouvidos para que o momento possa ainda ser um momento individual apesar de se estar no meio de uma multidão, por vezes, demasiado próxima e compacta.

Quem vive em Manhattan passa os primeiros momentos matinais nos transportes públicos, num cruzar de passos apressados e corridas para conseguir ainda apanhar aquele metro quase a partir. Jornal, livros e iPod em riste para tornarem úteis uns minutos desperdiçados. Depois, os contrastes, numa cidade que vive a dois ritmos, o desenfreado e o criativo, o que não tem um minuto a perder e o que se encosta a cada manhã ou noite na esquina do metro, com o rosto sulcado de estórias de outros países e de outros continentes, um passado de séculos, não apenas de anos, somados a apresentados ali, onde o mundo conflui, por vezes demasiado apressado para realmente absorver e se inebriar com aquela música. Em notas que dizem eu não quero a tua vida, quero o teu dinheiro, mas se não me deres nada toco à mesma, porque é a tocar que eu vivo, se não tocar o coração para de bater e a paixão esvai-se.

Numa cidade que para tornar ainda mais rápida a sua navegação tem as suas coordenadas afixadas em cada esquina numa cadência lógica de números que se cruzam com avenidas também numeradas. Aqui, normalmente o mapa fica em casa, tudo o que se precisa saber são os pontos cardeais e tomar alguns prédios como pontos de referência. Tudo se complica, no entanto, quando as ruas não seguem uma fórmula numérica e adoptam nomes, como na zona de downtown onde moro. No passado fim-de-semana uma visita para jantar quase que se perdeu porque não tinha a "grelha" numerada como guia.

Mas apesar do caos organizado, ainda há quem veja estrelas no céu Nova Iorquino e faça delas objecto de enormes telas. Desde este passado fim-de-semana está patente no Guggenheim uma retrospectiva do pintor expressionista abstracto americano Richard Pousette-Dart. Quadros que se apresentam à vista repletos de textura e de dinamismo, numa invocação do cosmos e de outros símbolos tão imateriais ao olho humano como os astros; em suma, uma viagem pessoal para o observador que o abstraccionismo proporciona como nenhum outro movimento artístico. Um pouco mais a Sul experimenta-se uma sinfonia em forma de outra cidade, desta feita, Berlim, na Neue Galerie com uma exposição que celebra o famoso quadro por Ernst Ludwig Kirchner, Berlin Street Scene. Mais uma vez, o pulsar de uma cidade em pinceladas que falam mais do que mil palavras.


Richard Pousette-Dart, Night Landscape (1969-71)

[Publicado no Semanário Económico - 24 de Agosto, 2007]

Aug 18, 2007

NY Diaries 11: Nova Iorque a Banhos

Muitas vezes a pergunta é, o que levaria consigo para uma Ilha deserta. Por vezes, no entanto, ir a banhos, significa deixar a ilha. Sim, é difícil esquecer que Nova Iorque é uma ilha, uma ilha, nas palavras de Colson Whitehead, no seu livro The Colossus of New York, segura por várias pontes, como se fossem âncoras que a impedem de andar à deriva. E não seria esse o cenário ideal, uma Nova Iorque ambulante pelo mundo? Mas Nova Iorque já está presente em várias latitudes e longitudes, no imaginário e nas lembranças dos milhões de turistas que a visitam todos os anos. Aliás, nesta altura do ano, os turistas são a maior multidão que percorre as ruas desta cidade durante o fim-de-semana. Os nativos, muitos desses estão a banhos nos Hamptons, ou noutro destino solarengo.

Mas afinal, em que consiste a bagagem de um New Yorker quando vai para os Hamptons. Não precisa de muito, porque as lojas, restaurantes, bares e galerias de arte o acompanham como um cão fiel ao seu dono. Num fenómeno de urbanização dos destinos de veraneio ou numa resistência feroz à "desurbanização", a lista de coisas que um urbanite não pode viver sem vai aumentado a cada ano. Num cenário de pequena vila à beira mar com arquitectura a condizer, as grandes lojas que se alinham em Madison Avenue ou no SoHo Nova Iorquinos, abrem as suas portas em ponto mais pequeno para o Verão, na esperança de não serem esquecidas e de tentarem o espírito mais relaxado.

Os apartamentos e as townhouses, essas transformam-se em casas imensas que em vez de se empilharem na cidade se estendem à beira do mar, lagos ou lagoas. Essas casas reflectem as mesmas paixões que se podem ver nos espaços consideravelmente mais pequenos habitados pelos seus donos na cidade. O Nova Iorquino não pode passar sem a sua obra de arte na parede, como os Sugimotos e os Damien Hirsts que vi no outro dia numa dessas casas dos Hamptons, mesmo os mais controversos, ou até talvez por isso, como os painéis em forma de janela gótica forrados de asas de borboletas num padrão de mosaicos multicores pelo segundo destes artistas.

Mas o Verão também continua na cidade, as trovoadas de tempos a tempos que lavam a atmosfera e refrescam o ar, o asfalto que quase derrete, a humidade que em certos dias nos faz lembrar climas tropicais, as noites quentes, muito quentes, e o metro que sufoca nas plataformas e relembra um frigorifico dentro das carruagens por causa do ar condicionado no máximo. Durante o Verão o brunch de Domingo é tomado al fresco, acompanhado por uma boa conversa e pelo jornal, o meu último brunch foi no 44X, localizado num bairro de Manhattan que traduzido à letra se chama cozinha do diabo, mas o que seria a vida sem estes pecadilhos como o de degustar ao Domingo um menu servido pela Hell's Kitchen

[Publicado no Semanário Económico - 17 de Agosto, 2007]

Aug 11, 2007

La Joie de Vivre


Nova Iorque tem uma atracção fatal por ser diferente. Não por irreverência pura e simples, mas pelo ser original, no sentido de superar o mediano, de ser excepcional. O cenário e a encenação podem ser os mais inesperados, nas primeiras sextas-feiras de cada mês o cenário é o Guggenheim e a encenação chama-se Art After Dark. Quando os relógios dão as nove badaladas da noite, o museu convida uma multidão diferente para partilhar os seus segredos e tesouros. As obras de arte que pensavam que iam ter uma noite repousante para recuperar da azáfama dos turistas e amantes da arte de todo o mundo que incansavelmente percorreram o museu durante o dia, têm ainda que sorrir e pousar por mais umas horas para a sessão da noite, desta feita, ao som dos ritmos do século XXI. Àquela hora, a rotunda do museu, a base de onde se ergue e para onde converge a enorme estrutura desenhada por Frank Lloyd Wright, não tem filas para comprar bilhetes, tem antes um bar e um DJ convidado.

Assim, como reza a tradição, na passada sexta-feira as hostes reuniram-se no Guggenheim, ao contrário da tradição, ali não se notava que Agosto é, geralmente, um mês mais vazio em Nova Iorque. Comigo, um amigo que tinha acabado de aterrar de Madrid, mas que já viveu em Paris e Singapura e que já viajou por muitas outras cidades. No meio da conversa, um comentário sobre o bom gosto Nova Iorquino. Sim, as pessoas em Nova Iorque têm estilo e afirmam-no, não o sussurram. Eclético, mas normalmente de extremo bom gosto. Aqui, a busca pela perfeição é uma forma de estar na vida, não um mero capricho intermitente. Aqui, quando se olha para a enorme espiral que dá forma ao museu, pensa-se que The Only Way is Up, como a canção dos Yazz, numa metáfora palpável para as aspirações desta cidade.

Depois, se as artes plásticas se cruzam com a arte musical, a música também por vezes se cruza com a arte de fazer negócio, mesmo quando o negócio em causa não é o da música. Desta vez o cenário foi o Javits Center, e a encenação Promotion Day. Na primeira sexta-feira de Agosto, a minha empresa aluga o Javits Center em Manhattan para celebrar as promoções de cada ano. Desta vez o convidado de honra, para aqueles que duvidam que um rapper pode inflamar uma plateia com palavras não cantadas, foi Queen Latifah. De Newark, New Jersey, para o estrelato foi um longo percurso de grande determinação. O segredo, segundo a artista que decidiu ser rainha por auto-nomeação, foi ter acreditado sempre em si própria, não ter tido receio de experimentar o até então não experimentado e ser apaixonada pelo que faz. E o leitor, vê uma pessoa apaixonada pela vida quando olha no espelho?

[Publicado no Semanário Económico - 10 de Agosto, 2007]

Jul 28, 2007

7/18

Serão cidades como Londres, Madrid ou Nova Iorque, cidades traumatizadas? O que será que pensam os residentes de outras cidades, aquelas cidades pacíficas, como Lisboa, que têm torres gémeas, mas não têm ataques terroristas, quando ouvem uma explosão, sentem as fundações do edifício onde se encontram abalar, ouvem o ruído do que parece fogo a crepitar e quando olham pela janela vêem uma coluna de fumo negro imensa, da altura de um arranha-céus, e pessoas a correr e a gritar na rua?

E será que a resposta depende da experiência pessoal do residente das chamadas cidades de risco, ou depende apenas do facto de se viver numa dessas cidades?

Quanto à resposta à primeira pergunta, a versão residente numa cidade assolada por ataques terroristas é: Pensamos o pior. Quanto à segunda pergunta, quando adquirimos morada numa destas cidades, adquirimos algo mais subtil, algo que não sabíamos que estávamos a "comprar" quando assinámos o contrato de arrendamento ou o contrato de compra e venda e que só se manifesta nas alturas dos aniversários dos acontecimentos trágicos que marcaram estas cidades, ou quando, e se, ouvimos essa explosão muito próximo de onde nos encontramos, mesmo que nunca se tenha, de facto, vivido um ataque terrorista.

No dia 18 de Julho, Manhattan viveu um começo de hora de ponta que acordou memórias adormecidas de outros tempos. Mesmo ao lado do edifício onde trabalho, o cenário foi como o acima descrito. As fundações das nossas vidas foram abaladas. Subitamente, tudo é relativizado, a prioridade deixa de ser o deadline e passa a ser o correr pela vida. No caminho ainda há tempo de agarrar o computador portátil, mas na secretária ficam os to dos. As escadas dos andares que demoram um tempo ínfimo a percorrer de elevador, parecem intermináveis, a saída de emergência nunca mais aparece e quando, finalmente, surge, não se sabe o que se vai encontrar lá fora.

Algumas pessoas falam de um prédio que colapsou. Prioridade, sair dali. Por outro lado, não se consegue deixar de pensar que, provavelmente, há quem nunca mais volte para casa. À medida que os passos vão somando ruas, a cidade parece progressivamente mais normal. A vinte quarteirões de distância, a cidade está totalmente abstraída, as pessoas sabem que o metro não está a funcionar, mas não sabem porquê. Durante horas, não se sabe o que aconteceu. Afinal, foi apenas a explosão acidental de um cano que abriu uma enorme cratera na Rua 42.

O que realmente aconteceu? O que já se sabia. O 11 de Setembro (9/11) não inspira apenas filmes, livros ou outras manifestações artísticas, como as fotografias de Eric Baudelaire, em exibição na Elizabeth Dee Gallery em Chelsea. Não, como dizia Nietzsche, acontecimentos "that move the world enter on doves' feet". Tudo o resto, são manifestações de uma consciência colectiva.


[Publicado no Semanário Económico - 27 de Julho, 2007]

Jul 21, 2007

Latitude 40

Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir; tu contemples ton âme

Baudelaire


Os NY Diaries desta semana foram escritos sobre o Atlântico, entre Londres e Nova Iorque, a 10,976 metros de altitude. Um voo de longo curso, pode muito provavelmente ser o cenário ideal para escrever os NY Diaries, sem BlackBerry, telefones, interrupções ou distracções, apenas eu e o computador portátil.

Mas se hoje em dia se vive em simbiose com os computadores, nada substitui o ver e sentir o mundo ao vivo, as gentes, as mentalidades, os cheiros e os sabores. Mesmo aqueles que nunca esquecemos, mas que, ainda assim, despertam memórias perdidas nos recantos da nossa história quando novamente percepcionados.

Desta vez Londres foi só para fazer escala. Revisitei Lisboa, onde nasci e cresci, uma terra que vive ao ritmo da nostalgia que sente quem um dia viu mais partir do que chegar, que deu novos mundos ao mundo, mas que se esqueceu de se reinventar. Uma Lisboa que senti enclausurada no passado, a avançar em passos tímidos em direcção ao futuro, em vez de vibrar com o presente.

Um dia a capital do Império e actualmente a capital do país que acolhe a presidência da União Europeia, a Lisboa de hoje não é apenas o confluir de gentes de outras paragens e nações, mas também de portugueses espalhados pelo mundo. Portugueses ou lisboetas que se conheceram nessas outras terras e que, de tempos a tempos, desaguam em Lisboa. Foi uma agradável coincidência geográfica que, desta vez, permitiu sentar a uma mesa do Bica do Sapato Londres, Luxemburgo e Nova Iorque. Uma ínfima mostra de um fenómeno que denoto cada vez mais comum em Portugal, o êxodo de talento para o estrangeiro. O que é mais gritante, é que há uns anos atrás saímos por opção de carreira ou de percurso pessoal, hoje, muitos dos que vão para o estrangeiro, saem porque não têm verdadeiras oportunidades no seu país.

Apesar de Nova Iorque e Lisboa partilharem praticamente a mesma latitude, os contrastes entre as duas cidades não podiam ser mais marcantes. Na voz de Bebel Gilberto, no seu último CD, os Nova Iorquinos "sonham ao vivo", e essa é uma diferença fundamental. Para nós, os sonhos são objectivos reais e palpáveis, não apenas meras quimeras. Talvez porque Nova Iorque viu chegar milhões de esperanças a Ellis Island, por onde antes de 1924 passou mais de setenta por cento da imigração americana, em vez de ter visto partir. Talvez porque tenha recebido quem estava disposto a correr riscos e a realmente fazer acontecer, porque a vida (injustamente ou não), não tem ensaios, é sempre um programa em directo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa


[Publicado no Semanário Económico - 20 de Julho, 2007]

Jul 7, 2007

Allotment

Cada cidade vivida por nós tem um componente de "nossa cidade", ou o nosso lote ou espaço soberano, em que nós, e apenas nós, reinamos, ditando o conteúdo de acordo com as nossas experiências.

O exterior, esse, vai evoluindo e vai-se transformando. De acordo com Brancusi, "arquitectura é escultura habitada", pois Londres está a ser esculpido intensivamente, bastando olhar para a linha do horizonte sobre a City de uma das inúmeras pontes sobre o Tamisa para ver uma imensa plantação de gruas e andaimes.

Os próprios locais vão incorporando a paisagem em metamorfose. Um exemplo disso é o Skylon, um novo restaurante localizado nas premissas do Royal Festival Hall, moderno, com uma decoração ousada, que delicia não só pelo menu de estilo Europeu contemporâneo, por Helena Puolakka, mas, também, pelas enormes janelas que funcionam como telas gigantes que vão mudando a abordagem ao tema Londres de acordo com a hora do dia e de acordo com a evolução arquitectónica da cidade.

Mas, nas palavras de Antony Gormley, cujo trabalho se encontra até 19 de Agosto em exibição na Hayward Gallery, "The body is our first habitation, the building our second". O nosso corpo é o meio para percepcionarmos e ao mesmo tempo moldarmos o que nos rodeia. Mega cidades como Nova Iorque ou Londres, são o produto de milhões de impressões digitais, ao mesmo tempo únicas e globais. Gormley explora esta dicotomia do corpo humano como sujeito e objecto, através de um convite ao observador para embarcar numa viagem pela dimensão física das instalações em mostra. Cada experiência é única, mas ao mesmo tempo pode ser partilhada por terceiros de um ponto de vista diverso. Neste contexto, é de realçar Blind Light, cujo título dá nome à exposição, que consiste numa viagem pelo vazio, ou seja, por entre vapor de água denso, num compartimento rectangular de luz brilhante, que pode ainda ser observada do exterior se os sujeitos da viagem se aproximarem das paredes exteriores do compartimento. Por fim, Allotment II, ou uma miríade de caixas rectangulares de cimento, que representam o menor espaço possível com dimensões suficientes para abrigar um corpo humano.

O tema da interacção entre o ser individual e as mega-metrópoles de hoje é retomado pela Tate Modern. Para além de Dalí and Film e The Body of Colour, por Hélio Oiticica, uma das exposições temporárias da Tate é, precisamente, dedicada às Global Cities. De acordo com as estatísticas mais recentes das Nações Unidas, 50% da população mundial vive hoje em cidades e é estimado que em 2050 esta percentagem ascenda aos 75%. Esta exposição analisa e interpreta o impacto deste crescimento urbano nas pessoas e no ambiente. No fundo, explora o eu e a dimensão social e espacial do eu e em que medida as decisões individuais do eu e a forma como o eu vive são (ou não) influenciadas pela dimensão dinâmica das cidades onde se insere.

[Publicado no Semanário Económico - 6 de Julho, 2007]

Jun 30, 2007

Shangri-La

Em vez de um horizonte perdido, uma mudança de cenário, ou melhor, várias mudanças de paisagem na linha do horizonte.

Primeiro, a descoberta de uma cidade, Edimburgo, com os seus edifícios cheios de história, preponderantemente em estilo Georgiano, e uma luz que lembra sempre Outono quando o sol se lembra de despontar, pelo dourado da luz reflectida nas paredes de pedra calcária dos prédios. Uma cidade que vive a um ritmo mais sossegado e onde os estabelecimentos encerram cedo. Como dizia um escocês que vive em Edimburgo e que tinha visitado Nova Iorque, "eu nunca conseguiria viver em Nova Iorque, é bom para visitar, mas muito acelerado para viver". No meu caso, o oposto, mas tudo está bem quando se vive na cidade que se elegeu para morada.

Depois, as Highlands, com o Loch Ness incluído. As paisagens são de um verde intenso, devido ao clima geralmente húmido e chuvoso, com um toque de mística pela névoa que rodeia os cumes montanhosos e com água em profusão a correr em cascatas e lagos de perder de vista, como que se os vales, ou glens, na terminologia gaélica, fossem uma manta de retalhos verdes, azuis e cinzentos de gradações várias. A beleza natural da Escócia convida a largas caminhadas, num acto de comunhão total com a natureza. Não o fiz, mas assim que se vislumbra da estrada a West Highland Way, o percurso mais famoso da Escócia, que vai desde Glasgow até Fort William, é fácil imaginar as motivações por trás dos inúmeros caminhantes.

No fundo, a grande questão é, o que buscamos (se buscamos algo) quando viajamos por terra, água ou ar. Qual é o dínamo de cada jornada. Uma sede de desconhecido? Uma curiosidade inata que nos leva a desafiar as nossas próprias fronteiras através do cruzar de fronteiras políticas? Acima de tudo, existe a vontade de ir, as razões percebem-se melhor depois, quando já se foi, viu e voltou.

Mas, por vezes, fica-se. Por vezes, as viagens transformam-se em meses e anos. Passamos de meros espias de uma casa alheia a moradores. Revisitei Londres, onde um dia fui e decidi morar. Na bagagem, as saudades dos amigos para matar. A latere, visitar os bairros onde vivi, Notting Hill, Bloomsbury e Chelsea, por esta ordem; passear nas ruas, sentir novamente aquela atmosfera tão própria desta cidade; os mercados de fim de semana; descobrir novas lojas e restaurantes; também os locais familiares, na expectativa de ver se ainda existem; e obter os produtos de sempre, os poucos que não se conseguem também encontrar em Nova Iorque. É como voltar a vestir uma peça de roupa que já não se usava há muito tempo, já não nos lembramos com o que é que a costumávamos usar e até, talvez, nos apeteça usar de outra forma. Aliás, a experiência é muito diferente, porque já não tem a etiqueta com o nome casa. Home is New York now.

[Publicado no Semanário Económico - 29 de Junho, 2007]

Jun 23, 2007

Alba*

Finalmente o mar. Todas aquelas semanas de trabalho intenso tinham por fim permitido desligar o computador sem aparecer de imediato um aviso prévio de calamidade próxima pelo break e todas aquelas horas de avião que tinham antecedido aquela viagem de comboio, tinham-na finalmente levado até à beira mar. Era um mar das dez da noite, a refolgar cinzento como que a gozar o último momento antes de se tornar uma massa indistinta borbulhante de som em vez de cor também. Como que a afirmar a sua presença e a chamar por atenção, porque, sim, àquela hora, noutro país qualquer, seria hora de passar a viagem a repousar os olhos na leitura ou a saborear uma conversa. No entanto, em vez de ver a sua imagem reflectida no vidro quando olhou pela janela, viu uma última réstia de luz do dia reflectida sobre as ondas e nas gotas da chuva que fustigavam aquele comboio com um destino que não era o seu, porque o seu destino ficava pelo caminho.

Esta é a costa da Escócia, mais um país, embora não mais um Estado soberano. Este é um povo de lutadores que viu a fortuna e o azar interlaçarem-se e intercalarem-se numa renda que não se pode desmanchar, apenas ver o resultado em cada momento da história. Terra cujo um dos primeiros povos a se estabelecer foram os Celtiberos, seguidos pelos Romanos e, assim, uma nação que parece remota e tão diferente da nossa península partilha connosco parte do código genético. Terra ainda de Adam Smith, David Hume, Sir Walter Scott, Arthur Conan Doyle e de Irvine Welsh.

O destino nesse dia era St. Andrews, berço do jogo onde o número 18 é o objectivo supremo, ou seja, onde ainda se pode vislumbrar, hoje, o campo de golfe mais antigo do mundo. O motivo, segundo as palavras do pai da noiva, uma fusão, donde se esperam multiplicações e nenhumas divisões. Ou nas palavras do noivo, um evento que celebrou não só uma união, mas também integração. Ou não estivessem naquele casamento na Escócia representantes de vários continentes, incluindo uma mulher portuguesa, que vive em Nova Iorque, a usar um turbante feito durante a festa por uma nigeriana com um tecido das cores do seu clã que fazia parte do seu traje para aquele evento. Para colmatar, dançaram-se danças escocesas e nigerianas com o Mar do Norte como pano de fundo.

Num mundo cada vez mais globalizado, é bom ver que tal não significa também uniformizado, mas antes oferecer novos mundos ao mundo e celebrar o presente que contém um futuro que não esquece o passado.

Num casamento que representou um hino à multiculturização e que foi abençoado de muitas formas, incluindo uma benção Celta:

May the road rise up
To meet you.

May the wind be always

At your back.

May the sun shine warm
upon your face.

May the rain fall soft
upon your field,

And until we meet again.

May God hold you in the palm of his hand.


*Termo em gaélico para Escócia.



[Publicado no Semanário Económico - 22 de Junho, 2007]

Jun 17, 2007

Manhattan ou não Manhattan, eis a questão


"Maybe we become New Yorkers the day we realize that New York will go on without us."


Colson Whitehead

Mas nós não queremos continuar sem a cidade, e esse é o eterno dilema de quem vive em Manhattan. Existem tantos Nova Iorques como os seus habitantes, e para cada um destes, uma cidade diferente para cada etapa das suas vidas. No entanto, há um ponto em comum a todos os que partilham as ruas, os prédios, os restaurantes ou os cafés, para os New Yorkers a diferença entre o estar na ilha e o estar fora da ilha representa o mundo. É a diferença entre o fazer parte e o estar excluído do vibrar, dos acontecimentos, da exposição ao virar da esquina, daquela loja, daquele concerto tão fácil de se chegar.

É por causa desta simples constatação, de que quem não está dentro (da ilha), está fora, que decisões que normalmente tomam em consideração factores de outra ordem, aqui, adquirem uma dimensão diferente. Uma dessas decisões é a de ter filhos. Foi só depois de viver em Manhattan que percebi a subtileza de comentários como o de Yale, um dos personagens de Woody Allen no filme Manhattan, quando, ao desejo manifestado pela sua mulher de ter filhos, responde, "ainda não, não estou preparado para me mudar para Connecticut". Connecticut ou New Jersey, não são, de facto, Nova Iorque, não apenas porque são já Estados diferentes, mas porque representam estilos de vida completamente diversos.

Na ilha está a selva urbana, a vida ao ritmo de mil à hora, os prédios que só podem crescer na vertical e ainda assim, onde o solo o permite, os apartamentos de divisões geralmente pequenas e a falta de espaço, a pressão imobiliária e os preços estratosféricos por um imóvel de dimensões meramente razoáveis para os standards americanos. Do outro lado, estão as casas de inúmeras divisões com jardim, os bairros familiares, as escolas mais acessíveis e uma viagem mais longa para chegar ao emprego. Mas a decisão de atravessar a ponte ou um dos túneis por baixo do rio não é tomada de ânimo leve. Um colega meu deixou recentemente esse estado de negação que duram os primeiros meses do segundo filho e passou para a realização, embora ainda totalmente convicta, de que vai ter que deixar de ser um nova iorquino. O choque, esse, não é apenas de quem muda, é também de quem vê partir, porque sabemos, precisamente, o que está a ser renunciado.

Mas nesta cidade nem tudo são dilemas existenciais, aqui também se dança Bach nas coreografias de monstros de talento do mundo da dança, como George Balanchine ou Jerome Robbins. Three by Bach: Concerto Barocco, Tribute e Brandenbburg, Sábado passado, pelo New York City Ballet, quem mais.

[Publicado no Semanário Económico - 15 de Junho, 2007]

Jun 9, 2007

Luminato

Assim que o homem decidiu desafiar os elementos foi criada a arquitectura. Assim que o homem decidiu aplicar os princípios das economias de escala e da especialização, foram criados os primeiros aglomerados. Assim que o homem decidiu que não existem limites à criatividade, foi criado o Luminato.

Uma viagem de negócios a Toronto coincidiu com o lançamento do Luminato, um festival que celebra as artes e a criatividade e que visa rivalizar outros festivais já estabelecidos no circuito das artes internacional, como os festivais de Edimburgo e de Sydney. Acima de tudo, o festival procura enfatizar a presença de Toronto no mapa, nesta feira das vaidades em que todas as cidades procuram o primeiro prémio. Uma busca que não é tanto uma forma de puro exibicionismo, mas antes um acto simbiótico de sobrevivência, pois, enquanto dão ao mundo as vivências que proporcionam, continuam a atrair os artistas e patronos que perpetuam o tecido multicultural que as enriquece.

Um fim de semana perfeito, pode, pois, ser numa cidade que se celebra a si própria com tons de mundo. As raízes estão lá, as folhas em qualquer parte. A inovação arquitectónica que pautua Toronto foi recentemente enriquecida pelo cristal, desenhado por Daniel Libeskind, que acrescenta ao edifício do Royal Ontario Museum cinco prismas que se intersectam, tal como se o passado se encontrasse com o presente. Enquanto deambulava pelo interior do cristal, no primeiro dia em que este abriu ao público e ainda com a maioria das galerias sem exposições, as primeiras palavras da música de David Byrne, The Heart's a Lonely Hunter, "Welcome to my spaceship", reverberavam na jukebox mental.

Depois, não basta a arquitectura, faltavam as imagens. Em particular, as fotografias de paisagens marinhas de Hiroshi Sugimoto como parte da exposição History of History, curada pelo artista, onde também se incluem antigos artefactos asiáticos e fósseis, ou a fotografia não fosse, segundo Sugimoto, o processo de transformar o presente em fósseis.

Ainda assim faltavam os sons, do saxofone, da percussão e do baixo, no morno do sol no distrito histórico da destilaria. Mas nada seria perfeito sem Omara Portuondo, ou a poesia feita música numa colaboração única de Philip Glass e Leonard Cohen. A poesia de Leonard Cohen também tem forma e um passeio pelo bairro de Yorkville a caminho do hotel, horas antes do regresso a Nova Iorque, levou-me à galeria Drabinsky, onde estão em exposição pela primeira vez os desenhos de Cohen feitos ao longo de mais de quarenta anos. Eu tinha visto a exposição anunciada no programa do festival para a segunda-feira seguinte à minha partida, por isso não tinha prestado mais atenção, até que o virar de uma esquina me levou à galeria com as portas já abertas. Depois, ficou um catálogo assinado por Cohen, afinal todas as cidades têm os seus tesouros...


Interior do Michael Lee-Chin Crystal:


Photos by RT

[Publicado no Semanário Económico - 8 de Junho, 2007]

Jun 2, 2007

Descodificar a Cidade

Cada cidade tem o seu código não escrito de regras e hábitos, o que em Nova Iorque é quase uma antítese, porque o que faz parte do código genético da Gotham (o outro nome para Nova Iorque) e de quem nela vive é o querer ser diferente. Cada cidade tem, também, a sua forma muito peculiar de viver cada estação do ano. Esta Segunda-feira foi Memorial Day, em homenagem aos soldados tombados em combate, o que significa o começo "não oficial" do Verão. Para os New Yorkers significa igualmente o início da época dos Hamptons. Os convites para as festas já não dizem respeito apenas a moradas de Manhattan, agora designam os locais do momento à beira mar, e até o meu supermercado on-line já me notificou que durante os próximos meses também faz entregas nesse destino.

A própria cidade veste-se para a ocasião, num misto de pequenos prazeres e de grandes eventos. Assim que o sol quente desponta, Bryant Park, na 42 com a 5.ª Avenida, fica lotado, à hora de almoço, com as multidões à procura de um pouco de sol para acompanhar a sua sandwich ou salada e para os que não conseguem deixar o computador portátil no escritório, o parque proporciona acesso wireless à Internet. Para as noites mornas, o bar ao ar livre abre os seus domínios.

A própria arte sai à rua. Este ano o bar terraço do MET para além de proporcionar umas vistas deslumbrantes de Central Parque e prédios circundantes, oferece uma mostra dos trabalhos mais recentes de Frank Stella. Por sua vez, o parque das esculturas do MoMA está neste momento a ser convertido no palco para uma exposição de outro escultor, desta feita, para assinalar os quarenta anos da carreira de Richard Serra.

Com o Verão vêm também os festivais e os concertos no parque. Nas palavras de Kahlil Gibran, "Art began when man glorified the sun with a hymn of gratitude", e Nova Iorque nunca esquece essa inspiração.

Outro hábito nova iorquino, que se torna num maior prazer quando as temperaturas se tornam amenas, é correr quer em Central Park, ou, como no meu caso, à beira do Hudson. Talvez porque os New Yorkers gostam de desafios ou talvez porque quando se quer fazer tudo, mas o tempo é escasso, correr proporciona uma maior flexibilidade para fazer exercício, a verdade é que é contagiante e com um menor ou maior "profissionalismo" praticamente todos o fazem. Mas aqui o correr só por correr também não servia, se em Londres as corridas para caridade ocorriam de tempos a tempos, aqui este tipo de eventos acontece quase semanalmente. Na semana passada, corri a Wall Street Run a favor da American Heart Association como parte da equipa da minha empresa, depois da missão cumprida, por volta das sete e meia da noite, se se perguntasse à maioria dos participantes para onde iam a seguir, um resposta não infrequente era, de volta ao escritório.

[Publicado no Semanário Económico - 1 de Junho, 2007]

May 26, 2007

Agon

"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce."

Cidades são como perfumes, podemos nos sentir atraídos pelo invólucro, podemos até testar num canto da pele, mas para realmente as adoptarmos temos que as usar, temos que as viver, para ver como é que reagem connosco, com o nosso ser e com as nossas aspirações e sonhos. Depois vamos experimentando, até encontrarmos a que combina com o estado de espírito de um dado período da nossa vida.

A minha cidade é Nova Iorque, porque nos identificamos e reconhecemos mutuamente e porque vivemos ao mesmo ritmo frenético. Há muitos anos atrás, houve uma promessa feita entre as luzes da cidade-feita-cenário pela distância entre a mesma e o topo do Empire State Building onde me encontrava, de que aquele pulsar, embora naquele momento para mim silencioso, ia ser um dia chamado de casa. Se hoje sou uma New Yorker, antes, por cinco anos, fui uma Londoner e, assim, já são quase sete anos de traição a Lisboa, mas uma traição muito fiel a mim própria.

Eu apenas comparo as duas cidades nas suas similaridades, ambas são cosmopolitas e imensas. Londres foi a realização de um objectivo que correu ainda melhor do que o planeado. O desabrochar para o mundo, o passar de recém-licenciada a mestranda e depois o salto para o mundo das mega-consultoras.

O que há de tão extraordinário sobre Manhattan? As cores, os cheiros e os sons, os tambores em Central Park e no metro em Union Square e as notas do saxofone escutadas aqui e ali. Uma cidade com uma vibração positiva como não senti outra, uma cidade onde todos os habitantes acham que estão na melhor cidade do mundo. O turbilhão de acontecimentos e de oferta cultural, a mescla de culturas, línguas e nações. Mas ainda assim, uma cidade com uma identidade única, parte lenda, parte realidade.

Para além da identidade da cidade, há as características dos que a elegem para morada. São os chamados tipo-alfa, para os quais apenas existe vencer e alcançar. Work hard and play hard, é o mote desta cidade. Depois, a Agon, tudo nesta cidade é competição. Numa entrevista que li no outro dia, Keith Jarrett disse que não imaginava o jazz ter nascido noutro país que não os Estados Unidos, ele acrescentava que a natureza do jazz é risco, e quando improvisado, é o equivalente musical a um circo sem rede de segurança. Por isso o jazz e Nova Iorque estão tão intimamente ligados, aqui a vida flui sem rede de segurança, aqui tudo é tudo ou nada.

O porquê desta coluna? A provocação irresistível de partilhar a minha vivência nesta mega-metrópole e noutros pontos do mundo.

"Para ser grande, sê inteiro:
nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago
a lua toda brilha,
porque alta vive."

Fernando Pessoa

[Publicado no Semanário Económico - 25 de Maio, 2007]