Oct 27, 2007

NY Diaries 18: Convenções

Na boa tradição do viver em sociedade em que se implementam convenções identificáveis pelo maior número possível de pessoas, e em que, de acordo com as mesmas, por exemplo, se divide o ano em estações e os dias em horas, é sempre um prazer ver um rebelde tomar forma, principalmente quando este brilha em tons vibrantes e é morno e saboroso. Esse rebelde é o Verão índio ou o Verão de São Martinho, como se queira chamar, na tradição anglo-saxónica ou ibérica, a verdade é que o Verão já disse vários falsos adeus este ano, mas teima em enganar o ciclo das estações e retorna sempre, semana após semana. Por aqui ainda se faz jogging à beira-rio ou goza-se o sol na relva do parque em trajes mais minimalistas, embora as folhas das árvores em redor estejam já activamente a trabalhar para outro tipo de bronze.

Nas palavras de Kurt Vonnegut, A Man without a Country:

I think that one of the biggest mistakes we're making, second only to being people, has to do with what time really is. We have all these instruments for slicing it up like a salami, clocks and calendars, and we name the slices as though we own them, and they can never change - "11:00 AM, November 11, 1918," for example - when in fact they are as likely to break into pieces or go scampering off as dollops of mercury.

Mas se as estações se rebelam e o tempo é aquilo que dele fazemos, a nossa percepção de uma cidade também vai evoluindo com esse chamado tempo vivido e não apenas contado por relógios ou calendários. Nova Iorque, por exemplo, cada vez me parece mais pequeno. É como que se a besta enorme e quase intimidante da minha primeira visita há muitos anos atrás tivesse sido gradualmente domesticada e se tornado um tigre amansado. É, de facto, uma questão de perspectiva, principalmente quando essa perspectiva inclui vislumbrar Manhattan de Sul a Norte banhada pelo sol através da janela de um avião como tive a sorte de fazer a semana passada ao aterrar de uma viagem de negócios. Dali os picos parecem apenas montes contíguos localizados em pontos estratégicos da cidade.

Esta semana também se atravessaram outras fronteiras. Desta vez, o Next Wave Festival, organizado pela Brooklyn Academy of Music, recebeu a Compañía Nacional de Danza Española, com coreografia por Nacho Duarte. Foram soberbos e terminaram a actuação com uma ovação de pé por um dos públicos mais exigentes. Por vos Muero, ao som de canções da Catalunha dos séculos XV e XVI e da poesia lindíssima de Garcilaso de la Vega; Castrati, ao som de Vivaldi o recrear de uma tradição que desafiou convenções porque outras convenções baniam a mulher da ópera e dos coros; e, por fim, White Darkness, numa reflexão sobre o mundo da droga. Mais uma semana inesquecível a bordo da Big Apple.

[Publicado no Semanário Económico - 26 de Outubro, 2007]

Oct 20, 2007

NY Diaries 17: Desejos do Intelecto Tornados Realidade na Selva de Betão

Os lugares onde vivemos deviam satisfazer quase todas as nossas necessidades, quer as físicas como as da alma. Viver em cidades como Nova Iorque é como abrir uma caixinha de surpresas todos os dias e sentirmo-nos como crianças numa loja de doces, ou como Hansel e Gretel perante a casa de pão de gengibre. Queremos tudo. A oferta de eventos, exposições, inaugurações e espectáculos vai muito além do que seria humanamente possível fazer num espaço de 24 horas. A tarefa mensal ou semanal é seleccionar, prioritizar e depois coordenar agendas. Por vezes, recebemos um bónus, ou vários eventos fabulosos concentrados. O festival da The New Yorker que decorreu no início do mês é precisamente um desses jackpots, ou um fim-de-semana de três dias dedicado às artes, com palestras, música, filmes e sessões de autógrafos.

Se tivesse havido uma vela apagada e um desejo para essa semana, podia bem ter incluído o autógrafo de um monstro do mundo das letras. Tão pouco me ocorreria dois e muito menos na mesma cidade. Mas aconteceu, na mesma tarde e no mesmo local. Numa época de prémios Nobel, Orhan Pamuk, o prémio Nobel da literatura do ano passado, e Salman Rushdie, numa sessão de autógrafos organizada pelo festival da The New Yorker. Por outro lado, numa cidade com uma das mais elevadas concentrações de artistas consagrados por metro quadrado, o Nova Iorquino vai-se tornando gradualmente impassível a estes fenómenos, pelo menos é assim que eu interpreto o facto de não terem estado multidões a aguardar estes autores.

O que é que Pamuk, Rushdie e Nova Iorque têm em comum? Pamuk viveu três anos em Nova Iorque, estas ruas, luz e verticalidade, terão, um dia, despertado nele ondas de criatividade. Ambos, Pamuk e Rushdie, desafiaram convenções e expressaram abertamente as suas opiniões e por isso receberam ameaças de morte. Nova Iorque já albergou muitos perseguidos políticos, ou, simplesmente, aqueles que procuraram pincelar a sua criatividade num ambiente de mais ampla liberdade.

Mas não é só a palavra escrita que desafia convenções, as convenções da frase feita música são regularmente desafiadas pelo Kronos Quartet. Desta vez, em equipa com o acordeão eléctrico de Kimmo Pohjonen e o sampler de Samuli Kosminen, como parte de outro dos jackpots de Outono, o Next Wave Festival, organizado pela Brooklyn Academy of Music. No mesmo dia que a sessão de autógrafos, num dia que só podia acontecer em Nova Iorque.

Five mysteries hold the keys to the unseen: the act of love, and the birth of a baby, and the contemplation of great art, and being in the presence of death or disaster, and hearing the human voice lifted in song. These are the occasions when the bolts of the universe fly open and we are given a glimpse of what is hidden; an eff of the ineffable.

Salman Rushdie, The Ground Beneath Her Feet (agora autografado por Rushdie)


[Publicado no Semanário Económico - 19 de Outubro, 2007]

Oct 6, 2007

NY Diaries 16: Cowboys que nunca ouviram falar de Lucky Luke

Quando embarcamos num avião rumo ao Texas, o que eu fiz a semana que passou pela primeira vez, automaticamente são despertadas memórias de outros tempos e de outras eras. Em Dallas o próprio aeroporto tem o nome de um forte, Fort Worth. Como se ainda hoje os invasores tivessem que ser barrados antes de entrarem o Lone Star. A estrela solitária não é outra que não o único Estado da Federação com direito de secessão. A alma intrépida de um estado de espírito que remota aos tempos em que o território foi desbravado a cavalo, em que o homem e o animal comungavam do mesmo caminho, medos e ambições, de sol a sol em rumo à linha do horizonte.

Depois de uma semana em formação por terras do Texas, se bem que circunscrita à "civilização", não vi cowboys à séria, apenas souvenirs alusivos e restaurantes temáticos com música country a condizer. Aparentemente o culto do cowboy é mais uma obsessão europeia que americana e horror dos horrores, a maioria dos americanos nunca ouviu falar de Lucky Luke! Como é que é possível crescer sem a companhia do único cowboy que dispara mais rápido que a sua sombra, sem Jolly Jumper, Rantanplan ou os irmãos Dalton? A pradaria não pode certamente ser a mesma sem aquela figura solitária criada por Morris num país tão distante do Wild West como a Bélgica...

Mas Dallas só por si também tem a sua estrela no passeio da fama das nossas memórias. Sim, Pam, Bob e J.R. pulularam um dia nos nossos serões e puseram no nosso mapa pessoal a terra dos magnatas do petróleo e dos rodeos. Nem de propósito, como para me relembrar para onde eu ia, o Financial Times do fim-de-semana anterior à minha partida tinha precisamente uma coluna sobre a série de televisão que um dia parou a América e foi notícia quando o J.R. foi assassinado. Para além das planícies, também as montanhas erguidas pelo homem, como não podia faltar no centro financeiro de uma cidade americana. Ali, o animal a domesticar são os mercados que cada vez se parecem menos com um touro e mais com um urso. Mas a caça ao urso é também um clássico americano, por isso ainda há esperança.

Pessoalmente, eu também tinha esperança que o regresso decorresse de acordo com o plano ao minuto previamente delineado. Três horas e trinta e quatro minutos de voo até Nova Iorque no final de Sexta-feira com aterragem mesmo a tempo da festa de inauguração da exposição de Richard Prince, no Guggenheim. Pois não, e a explicação vinha precisamente no Wall Street Journal desse dia que eu levava comigo no avião, parece que os céus por estas bandas andam congestionados e basta uma nuvem mais carregada a obstruir alguma das vias para o trânsito ficar totalmente engarrafado. Assim, cheguei a Manhattan às onze e meia da noite, precisamente à hora em que a festa terminava. Felizmente esta é a cidade que nunca dorme...

Foto: www.sesseler.de


[Publicado no Semanário Económico - 5 de Outubro, 2007]