Nov 17, 2007

NY Diaries 20: O Outro Lado do Espelho


Numa cidade dividida entre Este e Oeste, quase como se fosse uma Big Apple cortada ao meio prestes a ser devorada pelas hostes incansáveis que percorrem as suas ruas, ruas estas também com moradas divididas entre Este e Oeste, com uma West Village e uma East Village, sim, bem diferentes, uma trendy e outra alternativa, até mesmo com um East River e onde transitar de Este para Oeste nem sempre é fácil (note-se a quase ausência de linhas de metro que cruzem a cidade de um sentido ao outro), por vezes o Este e o Oeste também se encontram.

De acordo com Salman Rushdie, a palavra Oriente é derivada de Orientar. Para mim, é derivada de exótico, misticismo, especiarias, sedas e brocados, arabescos e porcelana. O Oriente, no entanto, rodopia e consegue saber onde está o Norte depois de o fazer. No Oriente a espiritualidade assume muitas formas e filosofias. Por vezes, essas formas expressam-se numa cidade, também ela na costa leste de um país. Nova Iorque foi palco de uma celebração que eu, nas minhas viagens anteriores à Turquia, acabei por nunca testemunhar, a cerimónia espiritual do Semâ. No palco de um teatro lindíssimo na rua 43, uma tradição com sete séculos em que a dança, ou acto infinito de rodopiar, transcende quer a terra como o céu, numa comunhão total com a eternidade. Esta cerimónia foi desempenhada pelos Whirling Dervishes da ordem Mevlevi da Turquia, uma ordem muçulmana fundada por inspiração do poeta e filósofo Sufi do século XIII, Mevlana Rumi.

De acordo com a filosofia de Rumi, tudo revolve e o ser humano vive, precisamente, através da revolução das partículas, revolução do sangue no seu corpo e revolução das etapas da sua vida. O Semâ é um ritual que representa a viagem espiritual em busca da verdade e crescimento, o abandono do eu e o regresso novamente a ser humano, mas um ser mais amadurecido, que atingiu uma maior perfeição.

Representa também comunhão de culturas, patente numa frase de Rumi que as gentes da Turquia mantêm bem presente: "vem, sejas tu quem fores, vem". Foi Istambul e Nova Iorque encontrados, outro expresso oriente que ligou cidades com várias culturas, tradições e religiões, uma ponte entre este e o outro lado do Atlântico e ainda mais além, que ligou a América, a Europa e a Ásia.


"You have no idea
how hard I have looked for a gift to bring You.
Nothing seemed right.
What is the point of bringing gold to a gold mine,
or water to the ocean.
Everything I came up with
was like taking spices to the Orient.
It is no good giving my heart and soul,
Because You already have these
So I have brought a mirror.
Look at Yourself and remember me."

Mevlânâ Rûmî

[Publicado no Semanário Económico - 16 de Novembro, 2007]

Nov 10, 2007

NY Diaries 19: Trick or Treat

Há uma noite no ano em que as fronteiras deste mundo e do outro se esvanecem, como as palavras de uma carta escrita a caneta de tinta permanente que cai ao mar. Para os Celtas essa era a noite de 31 de Outubro, quando o Verão e o tempo das colheitas terminavam e começava o longo e frio Inverno. Essa noite, é hoje, a noite de Halloween.

Trick or Treat? Não, não são apenas as crianças que o dizem, quando, mascaradas, tocam às portas das casas em busca de um rebuçado. Nesta noite, miúdos e graúdos têm direito a um querer ser. Talham-se lâmpadas de abóboras, decoram-se as casas e as montras de preto e laranja, fazem-se filas nas lojas de máscaras e deixa-se a imaginação voar. Uns tentam chocar, outros ser criativos e outros ainda, simplesmente, não se esforçam.

Em Nova Iorque o Halloween também se vive de uma forma especial. A noite, supostamente, de pseudo-filme de terror, transforma-se numa feira de personagens que desfilam um pouco por toda a parte na cidade, e, em particular, na West Village Parade. Andar nas ruas, é como imergir no mundo do fantástico, tão depressa nos cruzamos com vampiros ou bruxas, como com homens-aranha, ou Andy Warhols. A multidão é absolutamente incrível e depois de se atravessarem cordões e barreiras policiais para se chegar à tão esperada festa de Halloween, é quase com ironia que se vêm outra vez um sem número de polícias, embora, desta vez, vindos do mundo do faz-de-conta. Aqui, a euforia passou sem barreiras para o interior do Duvet, um clube de Manhattan, onde não faltaram, entre outros, o papa, uma freira, um padre, diabinhos, um faraó e uma dama antiga de minissaia.

Mas a apropriação do imaginário colectivo não acabou aqui. Noutro desafio às fronteiras pré-estabelecidas da originalidade, o Guggenheim tem em mostra uma exposição dedicada a Richard Prince, Spiritual America, que se descreve a ele próprio como um "ladrão" que "pratica sem licença". A grande revolução protagonizada por Richard Prince consistiu em refotografar nos anos 70 os anúncios de mobiliário para casa de uma revista, retirar qualquer referência publicitária das fotografias, emoldurá-las e exibi-las como obras da sua autoria. Daí seguiram-se outras séries, como as fotografias dos anúncios de uma marca de cigarros com outro símbolo americano, o cowboy.

No campo do desafio às fronteiras da identidade, ainda na semana do Halloween, a exposição dedicada a Sol LeWitt, Scribble Wall Drawings, na galeria de arte PaceWildenstein. Este mestre do minimalismo e da arte conceptual deixou este mundo em Abril de 2007, mas todos os enormes desenhos de parede foram executados em Agosto de 2007, segundo instruções detalhadas providenciadas por LeWitt. O comprador da obra adquire o padrão com uma licença para os desenhar, o que pode ser comissionado ao estúdio do artista. As obras são, assim, sempre diferentes, num processo de regeneração perpétua.

[Publicado no Semanário Económico - 9 de Novembro, 2007]