Mar 29, 2008

NY Diaries 30: A Páscoa em Nova Iorque

A Páscoa este ano chegou à cidade no rescaldo da capitulação de um dos cinco maiores bancos de investimento. Para a capital financeira dos Estados Unidos e, para muitos, ainda do mundo, o colapso do Bear Stearns e a iminência de colapso de outro dos cinco grandes, o Lehman Brothers, deixou um sabor amargo na boca da maioria dos Nova Iorquinos e acordou memórias de outros eventos semelhantes, não tão distantes, como o fim da Enron e da Andersen. O fim-de-semana de Páscoa, prolongado para os mercados financeiros, mas um fim-de-semana de dois dias apenas para a maioria de nós, foi merecido e necessário, para acalmar os ânimos dos que tiveram que navegar a montanha russa dos principais índices na semana que antecedeu à Páscoa.

Nos Estados Unidos, com excepção do Natal, não há feriados religiosos. Foi mais uma daquelas datas em que não se sabe muito bem se havemos de desejar boa Páscoa ou apenas bom fim-de-semana. Acabei por desejar bom Domingo aos que sabia que não celebravam a Páscoa ou em relação aos quais não tinha a certeza de celebrarem ou não, só porque achei que não podia deixar a data em branco.

Por seu turno, notava-se que era época de feriados noutros países. O fim-de-semana prolongado e o dólar em saldo foram factores que certamente contribuíram para eleger Nova Iorque como o destino para umas míni férias. Havia multidões de estrangeiros a passear na 5.ª Avenida no Sábado, numa invasão às lojas e às outras atracções da cidade. Por momentos, pensei que estava de volta a Londres dadas as vezes que ouvi o sotaque britânico nas ruas. No meu caso, as amêndoas que recebo todos os anos de Portugal nesta altura chegaram com um dia de atraso, mas não deixou de ser Páscoa de acordo com a tradição. Na primeira vez que visitei Nova Iorque, há muitos anos atrás, era ainda estudante e vim com colegas. Já então éramos um grupo eclético e enquanto uns começaram o dia mais tarde, outros, como eu, levantaram-se muito cedo para irem à missa a St. Patrick's. Depois, seguiu-se um passeio de barco à volta de Manhattan na Circle Line e um almoço de take away chinês em Central Park. St. Patrick's continua a fazer parte da tradição da minha Páscoa em Nova Iorque desde que troquei Londres por esta cidade. Este ano seguiu-se um brunch com amigos na West Village, no Café Cluny. O brunch de Domingo é um hábito tipicamente Nova Iorquino, mas este Domingo os sítios para brunch estavam particularmente cheios. Será pelo sol radioso que apesar do frio convidava a sair de casa, ou será que, apesar de tudo, ainda há muitos Nova Iorquinos que celebram a Páscoa? Talvez pelas duas razões, mas não deixou de ser um Domingo divinal, como só em Nova Iorque.

[Publicado no Semanário Económico - 28 de Março, 2008]

Mar 15, 2008

NY Diaries 29: A Cor e a Cidade

As cores de uma cidade inebriam os sentidos e passam ao mundo do subconsciente onde ficam e marcam cada novo olhar e cada memória. Nova Iorque, por vezes, é cinzento, marcado pelo aço dos arranha-céus que emolduram as ruas, por vezes verde do Central Park e doutras praças ajardinadas. Acima de tudo, o que marca a cidade durante a maior parte dos dias do ano é a luz, uma luz brilhante, cristalina e vibrante que inspira os artistas e ilumina a alma dos seus moradores. As cores da cidade também se manifestam de noite, os néons de Time Square, as cores que iluminam o topo do Empire State Building, cujo calendário das combinações para cada semana constam das notícias locais, e as iluminações de outros prédios que assim adquirem uma identidade própria e contribuem de uma forma muito particular para a paisagem nocturna de Manhattan.

A Primavera, no entanto, é ainda uma esperança distante, mas os New Yorkers não só a desejam desesperadamente, como a celebram de várias formas. A Primavera este ano é auspiciosamente colorida, de tons fortes e contrastantes, inspirada pelos anos setenta e pelo famoso Studio 54, a discoteca nova iorquina que fez furor nesta década que continua a ser inspiração. Mas estas são as formas para a estação que se podem ver mais nas montras do que ao vivo, porque o frio ainda não permite que a roupa mais amena assuma o papel de protagonista. Por sua vez, o museu de arte moderna presta homenagem à cor na exposição Color Chart: Reinventing Color, 1950 to Today. Desde a zona da entrada junto ao acesso às galerias dos pisos superiores que adquiriu uma nova textura com uma instalação de Jim Lambie que cobre o chão de tiras de fita adesiva multicor, num padrão de linhas continuas. À própria exposição, na zona dedicada a exposições temporárias no sexto andar, que invoca memórias de infância em que me deliciava a experimentar e a desafiar a palete das cores possíveis com aguarelas, guaches ou lápis de cor e de cera. Aqui a cor é mostrada na sua forma pura, tanto nos mostruários de tintas gigantes de Gerhard Richter, como nos quadros de Frank Stella em que a cor é aplicada sem quaisquer adições ou misturas, tal como vem da loja. Esta exposição explora uma tendência, patente na segunda metade do século XX, para usar a cor como um produto comercial e estandardizado em desafio ao conceito de expressão artística através da manipulação individualizada da cor que, por vezes, se tornava a própria imagem de marca do artista.

Mas enquanto o regresso aos pincéis nos intervalos da vida de consultora não acontece, podemos sempre imaginar como Pamuk que as palavras são o nosso meio para dar cor à realidade: "From the moment he begins to use words like colors in a painting, a writer can begin to see how wondrous and surprising the world is, and he breaks the bones of language to find his own voice." (Other Colors: Essays and a Story, 2007).

Jim Lambie - Instalação de Fita Adesiva no Chão

[Publicado no Semanário Económico - 14 de Março, 2008]

Mar 8, 2008

NY Diaries 28: Globalização ou a arte de pôr a (nossa) marca no mundo

No momento em que a economia se contrai, a própria noção de globalização é mais fortemente escrutinada e os seus benefícios questionados. Países como a França mantêm-se proteccionistas na alma ou, pelo menos, na alma dos seus políticos, mas há muito que um crescente número de empresas, até mesmo as francesas, de todos os quadrantes e áreas de actividade, compreenderam as teorias de economistas dos séculos XVIII e XIX como Adam Smith e David Ricardo. O mundo é o tabuleiro de xadrez onde se delineiam estratégias e se conquista. Nesta era em que as fronteiras são cada vez mais efémeras, a influência de um país no mundo pode assumir várias formas. No caso de Cai Guo-Qiang, artista Chinês que já viveu e trabalhou no Japão e que agora vive em Nova Iorque, a forma de deixar a sua marca no mundo transcendeu a trilogia tradicional que consiste em escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho e assumiu, talvez, uma forma mais efémera, mas não menos transformadora. O seu principal meio de expressão é a pólvora, inventada na China e que em Chinês significa, literalmente, "medicamento de fogo", que Cai utiliza de forma magistral, como que se a tentar controlar o incontrolável, tal como na letra de Discotheque dos U2 "You can reach / But you can't grab it / You can hold it, control it / No, you can't bag it".

O próprio Guggenheim que é um verdadeiro museu multinacional com presença também fora dos Estados Unidos, em cidades como Bilbau, Berlim e Veneza, tem neste momento em mostra em Nova Iorque uma exposição dedicada a Cai Quo-Qiang, a primeira retrospectiva dedicada pela instituição a um artista Chinês. A exposição tem em mostra três tipos de trabalhos, instalações, como Inopportune: Stage One (2004) que consiste em nove carros verdadeiros suspensos desde o tecto até ao átrio central do museu em progressão, como que se a encenar os vários estágios de uma explosão; eventos que envolvem verdadeiras explosões que decorreram desde 1989 em mais de vinte cidades por todo o mundo e que são apresentadas em vídeo; e desenhos feitos de explosões de pólvora sobre papel. Cai é considerado por alguns um artista conceptual, mas qualquer tentativa de classificação fica sempre aquém da versatilidade do seu trabalho que desafia as fronteiras tradicionais entre arte, história e filosofia. Apesar de ser um artista internacional, Cai cresceu durante a revolução cultural chinesa e o seu trabalho inclui motivos relacionados com episódios da história da China e denota influências da ideologia Maoísta e do confusionismo.

O que é preciso perceber é que as vantagens resultantes da globalização não se anulam, mas somam-se. Assim como um trabalho artístico produzido em Nova Iorque pode patrocinar a China, também um produto produzido por encomenda na China pode resultar numa margem de lucro de 1.5% para a empresa que o manufactura e em 53% de margem para as empresas que o distribuem nos Estados Unidos ou na Europa.


[Publicado no Semanário Económico - 7 de Março, 2008]