Apr 26, 2008

NY Diaries 32: Satyagraha

Acabada de aterrar de mais uma viagem à Europa, e aqui, ao designar a Europa no colectivo em vez de me referir a um país em específico, demonstro já uma influência americana, não precisei de um avião para voltar a partir rumo à Índia, onde estive no início deste ano. Viajei antes com a música, as imagens e as referências filosóficas do libreto de Satyagraha que invocaram memórias da minha viagem -- a memória dos últimos passos de Mahatma Gandhi em direcção ao seu assassino que vi demarcados no chão da sua última morada em Deli; a memória do local onde foi cremado, o Rajghat, marcado por uma pedra de mármore preta em forma de altar quadrado; e a memória da casa onde costumava ficar na antiga Bombaim, hoje convertida num museu em sua homenagem. Mas Satyagraha, a ópera da autoria de Philip Glass, aconteceu em Nova Iorque, não na Índia.

A nova produção de Satyagraha, uma co-produção entre a English National Opera e a Metropolitan Opera, teve a sua estreia em Nova Iorque na sexta-feira, dia 11. Uma visita à ópera em Nova Iorque é sempre especial. Os três edifícios imponentes, dedicados à música, ao ballet e à ópera, que compõem o Lincoln Center, conferem só por si uma atmosfera solene a qualquer visita. Por seu turno, o Nova Iorquino, em geral, veste-se de gala e segundo as últimas tendências da moda para o acontecimento. É comum ver vestidos de noite compridos, como se de uma feira de vaidades se tratasse. Mas dentro daquelas paredes homenageia-se, acima de tudo, a música e o canto.

Numa semana em que o Papa visitou Nova Iorque e sublinhou perante a Assembleia das Nações Unidas que o respeito pelos direitos humanos é essencial para o mundo. Satyagraha, a palavra em sânscrito para força da verdade, é precisamente sobre a luta de Gandhi pelos direitos humanos e a sua filosofia da não agressão como forma de protesto. A ópera é integralmente em sânscrito, com libreto inspirado pela vida e escritos de Gandhi e pelo Bhagavad Gita ou canção do senhor, um texto religioso Hindu que faz parte do épico clássico da Índia, o Mahabharata. A mensagem é intemporal mas esta produção reinventa a ópera de Glass de uma forma ao mesmo tempo surpreendente e inovadora. Resultado de uma colaboração entre dois artistas contemporâneos, Phelim McDermott e Julian Crouch, a cenografia está repleta de pormenores que providenciam uma nova dimensão à obra, como os novos materiais utilizados, as marionetas gigantes e ao facto do texto ser projectado no próprio cenário. No final, uma ovação de pé quando Philip Glass veio ao palco, também ele um Nova Iorquino. Em paralelo, a cidade reverbera com eventos ligados a Satyagraha, desde exposições, fóruns de debate e mega campanhas publicitárias, numa hiperactividade que só em Nova Iorque.

"Be the change you want to see in the world"
Mohandas Karamchand Gandhi

[Publicado no Semanário Económico - 25 de Abril, 2008]

Apr 12, 2008

NY Diaries 31: Facilitar a Navegação

Como eterna atrasada na leitura da revista New Yorker, normalmente aproveito as viagens de avião de longo curso para por a leitura em dia da dita. Esta passada sexta-feira, enquanto esperava por um voo para Londres, foi com espanto e um certo grau de simpatia pelos companheiros de "infortúnio" que vi um ou outro número atrasado da New Yorker a serem lidos à minha frente. No meu caso, o tempo de espera na porta de embarque por um voo de fim de noite num JFK calmo revelou-se não apenas uma excelente oportunidade de acabar de ler o jornal do dia e os números atrasados da New Yorker, mas também para escrever os últimos e-mails antes da partida -- os menos urgentes que puderam esperar até ali ou aqueles que iam garantir que segunda-feira não descarrilasse devido à minha ausência. Aqui, denota-se outra dependência Nova Iorquina, o BlackBerry, numa relação, em geral, de amor / ódio. Eu confesso que não vivia sem o objecto. Por vezes trata-se de uma relação temperamental, do género "ora logo agora é que havias de dar sinal de vida" ou do tipo, "ainda bem que existes, pois caso contrário teria que andar sempre de computador portátil atrás". Aqui, em vez de se desejar boas férias deseja-se também que sejam umas férias em que o famoso aparelho possa ficar em casa. Eu nunca o deixo para trás, pois só com o BlackBerry consigo estar descansada que se algo urgente acontecer na minha ausência eu vou saber e poder reagir. Mas claro, como em tudo, há os verdadeiramente dependentes e para esses decerto que vão inventar alguma terapia ou não estivessem os Nova Iorquinos tão à vontade com a psicanálise.

Chegada a Londres, em trânsito em Heathrow para transferir para um voo da British Airways, constato com um misto de alívio e de desapontamento que não tenho que partir do Terminal 5. Se por um lado estava curiosíssima para ver ao vivo o novo terminal que fez tanto furor nas semanas que antecederam à sua recente inauguração e que cujo lançamento da primeira pedra eu acompanhei quando vivia em Londres; por outro lado, tive oportunidade de ler as noticias mais recentes sobre o fiasco da abertura e da desorganização que ali ainda impera, levando muitos business travelers a procurarem, por agora, percursos ou meios de transporte alternativos. Heathrow tinha ainda mais boas noticias para quem, como eu, se vê de quando a quando em trânsito neste aeroporto. As medidas de segurança já estão um pouco mais razoáveis, já não se tem que tirar o computador portátil do saco, descalçar os sapatos ou consolidar todos os volumes de mão num único item, incluindo a mala de senhora. Assim, em vez de um aeroporto em que por vezes apetece ter asas, tais como os anjos de Cai Guo-Qiang e Lin Hwai-Min em Winds Shadow, o espectáculo que vi na véspera da minha partida de Nova Iorque, experienciei, finalmente, um Heathrow em que se consegue navegar.

[Publicado no Semanário Económico - 11 de Abril, 2008]