Jul 26, 2008

NY Diaries 41: "A Little Bit of History Repeating"


Por vezes é como se o mapa-mundo tivesse sido dobrado em dois quando a tinta estava ainda fresca, fazendo passar os nomes de um lado do Atlântico para o outro. No espaço de poucos quilómetros podemos ver Amesterdão e Siracusa, sem termos que atravessar fronteiras ou adaptarmo-nos a outra língua. De entre as várias coisas que foram trazidas do velho continente, incluem-se, sem dúvida, os topónimos. Mas enquanto para quem tenha nascido aqui talvez não seja motivo de estranheza esta salada russa de nomes de cidades de outras paragens, para nós, europeus, a primeira imagem que vem à ideia é a do local original.

O fim-de-semana passado estive em Siracusa, na zona norte do Estado de Nova Iorque, não em Itália. Pessoalmente, imagino sempre o nome pronunciado em francês, na letra de Henri Salvador e na voz de China Forbes dos Pink Martini, mas esta Siracusa não tem mar, nem sol mediterrânico. O motivo da visita foi uma festa de "pós-casamento" de uns grandes amigos. É cada vez mais comum para casais de duas nacionalidades diferentes organizarem mais do que um copo de água, e, embora, muitas vezes a denominação da festa seja diferente, o objectivo é basicamente o mesmo, ou seja, partilhar o acontecimento com os amigos e familiares nas várias localizações. Na era da globalização é, por vezes, um desafio manter a tradição, mas essa mesma globalização faz tudo parecer mais perto e, no fundo, trata-se do mesmo fenómeno, embora com várias manifestações, o de aproximar o distante.

Na semana passada vi ainda a retrospectiva no Guggenheim de outra expatriada, esta de há muitos anos atrás. Louise Bourgeois nasceu em Paris em 1911 e mudou-se para Nova Iorque com o seu marido americano em 1938. Nesta mudança, o processo criativo funcionou ao mesmo tempo como uma forma de expressão e como um processo de assimilação da nova paisagem e dos novos papeis que Bourgeois começava a desempenhar, o de esposa e de mãe. Nas suas primeiras esculturas, formas solitárias em madeira, estreitas e compridas, denota-se a verticalidade dos arranha-céus que a rodeavam. Depois vieram outras formas e materiais, algo que a artista continua a explorar em Nova Iorque, onde continua a viver e a criar.

No entanto, não é só nos nomes das localidades ou no grupo dos expatriados europeus que a Europa se faz representar nos Estados Unidos. Com os preços da gasolina a atingirem preços estratosféricos os americanos estão gradualmente a render-se à evidência que conduzir carros enormes tem custos proporcionais ao tamanho dos mesmos. Neste momento, os carros mais pequenos de marcas europeias, como o Mini Cooper ou outros carros que nos são tão familiares nas cidades europeias, onde as ruas são mais estreitas, o estacionamento é escasso e a rapidez com que nos movimentamos no trânsito congestionado importa mais do que o tamanho do carro, são objecto de grande procura e já suplantaram as vendas de SUV's.

Retrospectiva de Louise Bourgeois no Guggenheim. Fotografia: The New York Times.

[Publicado no Semanário Económico - 25 de Julho, 2008]

Jul 12, 2008

NY Diaries 40: Nacionalismo e escapadelas num fim-de-semana prolongado


Nascida a 4 de Julho. Nesta data celebra-se a aprovação pelo Congresso da Declaração da Independência que marcou o cortar do cordão umbilical com Inglaterra e o nascimento de uma nação em 1776. Já passaram séculos, mas nas celebrações que um pouco por todo o país marcam esta data denota-se ainda uma euforia de novo mundo e a necessidade de cunhar uma identidade própria. Entre os cidadãos novos e a "velha guarda", descendentes de famílias que se estabeleceram aqui ainda antes dos Estados Unidos o serem, há várias formas de viver o acontecimento.

Em Washington, D.C., onde passei o meu primeiro 4 de Julho, a massa de pessoas está vestida a rigor, em azuis, vermelhos e brancos, com estrelas e chapéus, desfiles e fogo-de-artifício. Em Nova Iorque, talvez por causa dos muitos estrangeiros ou americanos de primeira geração, as demonstrações exteriores de nacionalismo são menos exuberantes. No entanto, as celebrações não são menos levadas a sério. O magnífico fogo-de-artifício sobre o East River atrai milhares de pessoas à cidade e está entre os melhores que se podem presenciar.

Mas o que seria um fim-de-semana prolongado sem uma escapadela da cidade, nem que seja apenas por um dia. É por isso que "o meu espírito me impele a falar de formas transformadas em novos corpos", numa tradução livre do verso de Ovídio na sua obra, Metamorfoses. Porque viajei à beira do Hudson, ladeada por uma imensidão de água, até Beacon, a Norte de Nova Iorque. Porque ali visitei o Dia, um museu de arte contemporânea com salas desafogadas dedicados a artistas como Donald Judd, Sol LeWitt, Andy Warhol ou Louise Bourgeois. Porque num espaço como este o melhor de dois mundos pode confluir. Foi, de facto, um privilégio poder assistir à actuação de uma das minhas companhias de dança favoritas, a Merce Cunningham Dance Company, com coreografia pelo que é considerado por muitos o melhor coreógrafo vivo, Merce Cunningham, por entre as Torqued Ellipses de um dos escultores que mais gosto, Richard Serra. O guarda-roupa dos bailarinos era em tons férreos, com motivos geométricos minimalistas inspirados pela traça das esculturas. Dentro de cada elipse estava um músico e o som ressoava modificado pelas enormes estruturas de metal. A extremidade de cada galeria estava aberta para o jardim circundante. Foi como passar uma tarde ensolarada na companhia de bailarinos que actuavam à nossa beira.

As actuações da Merce Cunningham Dance Company em espaços públicos não são uma novidade. Já os tinha visto actuar num espaço idêntico, embora de dimensões muito maiores, o Turbine Hall da Tate Modern, por entre a luz do "sol" ou The Weather Project do artista Olafur Eliasson, quando ainda morava em Londres. Estes bailarinos desafiam não só os limites da técnica da dança, como as barreiras espaciais entre espectador e bailarino, imergindo-se no ambiente circundante sem pejos.

Fotografias: The New York Times
[Publicado no Semanário Económico - 11 de Julho, 2008]

Jul 5, 2008

NY Diaries 39: A água toma novas formas

Manhattan é uma ilha em permanente transformação. Uns arranha-céus são deitados abaixo, outros são construídos, assumindo contornos mais ou menos extravagantes. Uma amálgama de betão, ferro e vidro com alguns oásis de verdura e contornada por uma linha de água. Poder vislumbrar a água em profusão traz frescura mental mesmo em dias de verão sufocantes, quando as temperaturas atingem o vermelho e a humidade se avoluma prestes a rebentar numa trovoada. São pequenos nadas que fazem toda a diferença. Afinal Manhattan é uma ilha, mesmo quando os prédios escondem a água. Uma ilha que, em Downtown, se pode atravessar a pé em 15 minutos. De um lado o Hudson, do outro o East River, cada um com uma personalidade e paisagem próprias. A água é energia em circulação, como que o continuar desta cidade vibrante. Mas o lençol de água que aparentemente corre quase imutável, também pode ser transformado.

Desde dia 26 de Junho que Manhattan tem cascatas. Estas, em vez de serem uma criação da natureza, são antes o produto da imaginação e esforço de Olafur Eliasson, o artista que trouxe o "sol" à Tate Modern, em Londres, e que constantemente transforma o que nos rodeia ou a forma como percepcionamos o que pensávamos ser quase imutável. Esta semana vi duas das cascatas de noite. Uma de longe, a do Pier 35, junto à Ponte de Manhattan e outra de perto, da varanda do Pier 17, que proporciona uma vista fantástica da Ponte de Brooklyn e, agora, da cascata debaixo da mesma, junto a um dos seus pilares. Ao todo são quatro as cascatas que transformam a paisagem da cidade durante este verão.

Não é a primeira vez que um mega projecto de arte toma os espaços públicos da cidade. Em 2005, The Gates, obra dos artistas Christo e Jeanne-Claude, invadiram o Central Park de tons de laranja, ainda antes de eu me ter mudado de Londres para Nova Iorque. Desta vez, no entanto, pude experienciar ao vivo a natureza em forma de arte, se assim se pode definir a simulação de um fenómeno natural para fins estéticos ou filosóficos, quase como se de uma obra-prima acidental se tratasse, na terminologia do livro homónimo de Michael Kimmelman, critico de arte do The New York Times, que ando a ler.

O efeito é impressionante. Há poucos fenómenos mais poderosos do que a força da água em queda livre, uma manifestação ao mesmo tempo de força e de paz. É como trazer um pedaço de paraíso à turbulência da cidade. Uma visão idílica que no momento da contemplação consegue apagar todos os ruídos da cidade e que automaticamente nos relaxa do ritmo intensíssimo de um dia de trabalho. Depois, "the show must go on", as cascatas são desligadas às dez da noite, mas a Ásia está a começar o dia e ainda há que tratar dos assuntos urgentes com esta parte do mundo antes que o nosso botão possa ser desligado.

Fotografia: Vincent Laforet para o The New York Times

[Publicado no Semanário Económico - 4 de Julho, 2008]